quinta-feira, julho 31, 2003
079 - JORNALISMO E POLÍTICA
Claro, Pacheco Pereira, é exactamente assim, tal como refere neste seu post que transcrevo aqui:
UMA QUESTÃO TABU DO JORNALISMO E DA POLÍTICA
Um jornalista que tem fontes altamente colocadas na vida política, que lhe fornecem informações confidenciais que implicam quebra de segredo ou lealdade ou com o governo ou com o partido de que fazem parte, acaba por ter um ascendente sobre essas fontes. Por muito que exista uma troca de favores entre o político que assim fornece informações com intencionalidade (contra os seu adversários políticos, contra quem lhe faz sombra na carreira) e o jornalista que vê o seu jornal aumentar as tiragens pelos “escândalos” que publica e a própria carreira de jornalista subir de cotação , a verdade é que dada a natureza das suas funções e a distinção entre a penalização social dos dois comportamentos, é o jornalista que “manda”.
O que é que acontece quando o jornalista inicia uma carreira política e vai ter que partilhar o mesmo mundo com os políticos que o informavam? Como é que ele pode iludir que sabe, no mesmo gabinete, no mesmo partido, quem informa os jornais? Como é que as “fontes”, que sabem que ele sabe que foram eles que denunciaram X, ou forneceram o documento que incriminou Y, o tratam? Podem ter liberdade para criticar o homem a quem passavam informações? Podem deixar de sentir uma potencial chantagem sobre eles? Mesmo na melhor das hipóteses é uma relação particularmente doentia e ambígua.
Adicionando o que eu havia dito antes no meu post nº 077
A questão das informações, das reportagens, das fotos, etc. que são mantidas inéditas como elementos de pressão, "enquanto te portares bem..."
Seguindo aquele velho esquema do "eu sei que tu sabes que eu sei..."
UMA QUESTÃO TABU DO JORNALISMO E DA POLÍTICA
Um jornalista que tem fontes altamente colocadas na vida política, que lhe fornecem informações confidenciais que implicam quebra de segredo ou lealdade ou com o governo ou com o partido de que fazem parte, acaba por ter um ascendente sobre essas fontes. Por muito que exista uma troca de favores entre o político que assim fornece informações com intencionalidade (contra os seu adversários políticos, contra quem lhe faz sombra na carreira) e o jornalista que vê o seu jornal aumentar as tiragens pelos “escândalos” que publica e a própria carreira de jornalista subir de cotação , a verdade é que dada a natureza das suas funções e a distinção entre a penalização social dos dois comportamentos, é o jornalista que “manda”.
O que é que acontece quando o jornalista inicia uma carreira política e vai ter que partilhar o mesmo mundo com os políticos que o informavam? Como é que ele pode iludir que sabe, no mesmo gabinete, no mesmo partido, quem informa os jornais? Como é que as “fontes”, que sabem que ele sabe que foram eles que denunciaram X, ou forneceram o documento que incriminou Y, o tratam? Podem ter liberdade para criticar o homem a quem passavam informações? Podem deixar de sentir uma potencial chantagem sobre eles? Mesmo na melhor das hipóteses é uma relação particularmente doentia e ambígua.
Adicionando o que eu havia dito antes no meu post nº 077
A questão das informações, das reportagens, das fotos, etc. que são mantidas inéditas como elementos de pressão, "enquanto te portares bem..."
Seguindo aquele velho esquema do "eu sei que tu sabes que eu sei..."
quarta-feira, julho 30, 2003
078 - AUTORES, 6
Talvez seja do calor.
Sem grande paciência para falar de coisas novas, deixo uma história antiga de José Cardoso Pires. Sobre a ética das profissões - o que em alguns casos vem mesmo a propósito (ver post anterior).
Publiquei-a no DNA do último sábado, 26.07., e aqui fica arquivada.
JOSÉ CARDOSO PIRES:
o Polícia e o Carteirista
Esta não é uma história de escritores e editores como tem sido frequente nestas crónicas, mas de um escritor confrontado com o mundo real das suas personagens.
Uma história de policias e carteiristas, mesmo ao gosto de José Cardoso Pires.
Ele gostava de a contar, por isso a repetia sempre que desafiado. E eu, confesso, de tanto a ouvir, nunca fui capaz de distinguir o que havia nela de verdadeiro ou onde se infiltrava a conhecida imaginação dos escritores.
Quem conheceu de perto José Cardoso Pires recordará por certo a sua irritação relativamente a umas quantas autoridades (Policias, GNRs, Pides, Legionários, Juízes, etc.), assim como a sua compreensão e indulgência por algumas actividades marginais (carteiristas, traficantes, vadios, etc.), sobre as quais escreveu algumas histórias geniais: o Al Capone da Conceição com escritório numa leitaria da avenida Almirante Reis, o Martins Mãos de Seda, o Lidoro da Conceição, dito o Ganso, o Dente de Ouro vampiro-almirante, e outros, que eu sei lá. O próprio Cauteleiro de “O Delfim”, que é afinal quem assume a consciência final de toda a história.
Pois um dia o Zé regressava a Lisboa, tranquilamente, depois de cumpridos os afazeres que o haviam levado até fora da cidade. O cenário não pode ser uma auto-estrada, porque nesse tempo ainda as não havia em profusão, como hoje acontece. Também não poderemos falar em grandes velocidades porque o condutor a isso se não atrevia, com a sua conhecida inabilidade para as máquinas motorizadas. Receios de assaltos na estrada também não se comparavam aos que hoje acontecem. Por isso, a meio do caminho, tranquilo, o Zé decidiu aceitar a companhia de um novo passageiro que lhe solicitava boleia na berma da estrada.
Pessoa educada (como depois se pôde confirmar), razoavelmente bem vestido, agradeceu cortesmente o transporte que lhe era oferecido e sentou-se a seu lado.
O Zé, como se sabe, gostava de companhia e de conversar. Viu imediatamente na situação uma forma de quebrar a monotonia da condução até Lisboa. E tentou “puxar” pelo homem, saber quem era, o que fazia, porque andava ali na estrada sozinho, contou-lhe algumas coisas acerca de si próprio a ver se lhe desatava a língua. Mas o homem nada, não se descosia, respondendo apenas com monossílabos. Pessoa de poucas falas, portanto, homem reservado e misterioso, terá pensado o Zé.
Do pouco que falaram, a única coisa que o escritor conseguiu perceber foi que o seu companheiro de viagem tinha pressa de chegar a Lisboa. Por isso decidiu ser amável, aceitar e respeitar o silêncio do outro, acelerando o carro o mais que lhe era possível. Não devia ter sido muita a velocidade, porque o velho NSU já não daria para muito mais e o condutor, como já referi, também não possuía grandes dotes de acelera. De qualquer modo foi o suficiente para exceder os limites permitidos e para que um polícia, escondido como é costume na berma da estrada, os mandasse parar.
- Ora que espiga… – estou mesmo a ouvir o Zé, começando a ficar irritado com a situação.
- Tudo por minha causa, o senhor faça o favor de desculpar… – dizia o companheiro, bem-educado e preocupado com o transtorno causado.
E lá pararam, o NSU cansado e ofegante.
- Os seus documentos… – pediu certamente o agente da autoridade depois da continência convencional.
Nova irritação para o Zé, já se imagina. Onde estariam o raio dos documentos do carro? No porta-luvas? À frente, escondidos dentro da bagageira? – não se esqueça que o NSU tinha o motor atrás…
Condutor e companheiro procuraram, procuraram, o Zé cada vez mais irritado, o companheiro continuando solicito, ajudando, desculpando-se sempre pelo incómodo causado.
Saíram os dois do carro, documentos finalmente encontrados, o Zé já não sabendo se havia de estar mais irritado com o polícia ou com a situação em que se viu envolvido.
- Faz favor… – disse o Zé, entregando finalmente os documentos ao polícia, como quem lhe aponta uma pistola ao peito.
O Zé odiava polícias, vinha-lhe isto, como já disse, da sua genérica aversão às autoridades. Fiscais, policiais, aduaneiras militares. Todas.
- Vou ter de o multar… o cavalheiro vinha em excesso de velocidade, está ali aquele sinal antes da curva…
Era mesmo o que eu estava à espera, deve ter pensado o Zé enquanto via o polícia puxar pelo livro das multas e iniciar, com dificuldade e lentidão, o preenchimento do papelinho, virando e revirando os documentos que, felizmente, estavam em ordem.
Foi então que, rodeando o polícia, o seu companheiro de viagem decidiu colocar-se também em seu apoio.
- O Senhor Guarda não pode fazer uma coisa destas. A minha mulher está a morrer no Hospital, este senhor fez o favor de me dar uma boleia, ia depressa por minha causa, a ver se ainda chego antes da coitada exalar o último suspiro.
Mas o polícia não se comoveu com a cantilena, agora rodeado pelos dois, cada um tentando à sua maneira demove-lo de cumprir o seu dever.
Quando de novo arrancaram, o Zé amarfanhando a multa no bolso do casaco, resmungando com a sua queda para atrair as desgraças e os problemas, o silêncio era de gelo.
Foram assim os primeiros quilómetros de reinício da viagem: um silêncio pesado, o Zé certamente arrependido da boleia dada a um gajo que nem tinha rendido conversa para um conto; o outro preocupado, sentindo-se o causador do infortúnio.
Até que, por fim, foi o outro quem decidiu falar:
- O senhor desculpe… o senhor foi tão amável… tudo isto por minha causa… tudo isto porque eu lhe disse que tinha pressa…embora eu nem seja casado… nem tenho mulher nenhuma às portas da morte…sou apenas um modesto carteirista, um profissional do gamanço…
Imagine-se o Zé, conduzindo irritado, ter de repente que pensar em que bolso estava guardada a carteira, onde é que tinha voltado a pôr os documentos do carro, o que é que estava na bagageira do carro quando a abrira, como era possível que tudo isto lhe estivesse a acontecer a ele, dar boleia a um carteirista.
- O senhor foi tão amável que eu, que sou um homem sério e agradecido, não posso deixar de o compensar à minha modesta maneira…
E levando a mão ao bolso, pousou delicadamente sobre o tablier do velho NSU o livro das multas, roubado ao polícia durante os abraços.
Não há duvida. Todas as profissões têm a sua ética...
Sem grande paciência para falar de coisas novas, deixo uma história antiga de José Cardoso Pires. Sobre a ética das profissões - o que em alguns casos vem mesmo a propósito (ver post anterior).
Publiquei-a no DNA do último sábado, 26.07., e aqui fica arquivada.
JOSÉ CARDOSO PIRES:
o Polícia e o Carteirista
Esta não é uma história de escritores e editores como tem sido frequente nestas crónicas, mas de um escritor confrontado com o mundo real das suas personagens.
Uma história de policias e carteiristas, mesmo ao gosto de José Cardoso Pires.
Ele gostava de a contar, por isso a repetia sempre que desafiado. E eu, confesso, de tanto a ouvir, nunca fui capaz de distinguir o que havia nela de verdadeiro ou onde se infiltrava a conhecida imaginação dos escritores.
Quem conheceu de perto José Cardoso Pires recordará por certo a sua irritação relativamente a umas quantas autoridades (Policias, GNRs, Pides, Legionários, Juízes, etc.), assim como a sua compreensão e indulgência por algumas actividades marginais (carteiristas, traficantes, vadios, etc.), sobre as quais escreveu algumas histórias geniais: o Al Capone da Conceição com escritório numa leitaria da avenida Almirante Reis, o Martins Mãos de Seda, o Lidoro da Conceição, dito o Ganso, o Dente de Ouro vampiro-almirante, e outros, que eu sei lá. O próprio Cauteleiro de “O Delfim”, que é afinal quem assume a consciência final de toda a história.
Pois um dia o Zé regressava a Lisboa, tranquilamente, depois de cumpridos os afazeres que o haviam levado até fora da cidade. O cenário não pode ser uma auto-estrada, porque nesse tempo ainda as não havia em profusão, como hoje acontece. Também não poderemos falar em grandes velocidades porque o condutor a isso se não atrevia, com a sua conhecida inabilidade para as máquinas motorizadas. Receios de assaltos na estrada também não se comparavam aos que hoje acontecem. Por isso, a meio do caminho, tranquilo, o Zé decidiu aceitar a companhia de um novo passageiro que lhe solicitava boleia na berma da estrada.
Pessoa educada (como depois se pôde confirmar), razoavelmente bem vestido, agradeceu cortesmente o transporte que lhe era oferecido e sentou-se a seu lado.
O Zé, como se sabe, gostava de companhia e de conversar. Viu imediatamente na situação uma forma de quebrar a monotonia da condução até Lisboa. E tentou “puxar” pelo homem, saber quem era, o que fazia, porque andava ali na estrada sozinho, contou-lhe algumas coisas acerca de si próprio a ver se lhe desatava a língua. Mas o homem nada, não se descosia, respondendo apenas com monossílabos. Pessoa de poucas falas, portanto, homem reservado e misterioso, terá pensado o Zé.
Do pouco que falaram, a única coisa que o escritor conseguiu perceber foi que o seu companheiro de viagem tinha pressa de chegar a Lisboa. Por isso decidiu ser amável, aceitar e respeitar o silêncio do outro, acelerando o carro o mais que lhe era possível. Não devia ter sido muita a velocidade, porque o velho NSU já não daria para muito mais e o condutor, como já referi, também não possuía grandes dotes de acelera. De qualquer modo foi o suficiente para exceder os limites permitidos e para que um polícia, escondido como é costume na berma da estrada, os mandasse parar.
- Ora que espiga… – estou mesmo a ouvir o Zé, começando a ficar irritado com a situação.
- Tudo por minha causa, o senhor faça o favor de desculpar… – dizia o companheiro, bem-educado e preocupado com o transtorno causado.
E lá pararam, o NSU cansado e ofegante.
- Os seus documentos… – pediu certamente o agente da autoridade depois da continência convencional.
Nova irritação para o Zé, já se imagina. Onde estariam o raio dos documentos do carro? No porta-luvas? À frente, escondidos dentro da bagageira? – não se esqueça que o NSU tinha o motor atrás…
Condutor e companheiro procuraram, procuraram, o Zé cada vez mais irritado, o companheiro continuando solicito, ajudando, desculpando-se sempre pelo incómodo causado.
Saíram os dois do carro, documentos finalmente encontrados, o Zé já não sabendo se havia de estar mais irritado com o polícia ou com a situação em que se viu envolvido.
- Faz favor… – disse o Zé, entregando finalmente os documentos ao polícia, como quem lhe aponta uma pistola ao peito.
O Zé odiava polícias, vinha-lhe isto, como já disse, da sua genérica aversão às autoridades. Fiscais, policiais, aduaneiras militares. Todas.
- Vou ter de o multar… o cavalheiro vinha em excesso de velocidade, está ali aquele sinal antes da curva…
Era mesmo o que eu estava à espera, deve ter pensado o Zé enquanto via o polícia puxar pelo livro das multas e iniciar, com dificuldade e lentidão, o preenchimento do papelinho, virando e revirando os documentos que, felizmente, estavam em ordem.
Foi então que, rodeando o polícia, o seu companheiro de viagem decidiu colocar-se também em seu apoio.
- O Senhor Guarda não pode fazer uma coisa destas. A minha mulher está a morrer no Hospital, este senhor fez o favor de me dar uma boleia, ia depressa por minha causa, a ver se ainda chego antes da coitada exalar o último suspiro.
Mas o polícia não se comoveu com a cantilena, agora rodeado pelos dois, cada um tentando à sua maneira demove-lo de cumprir o seu dever.
Quando de novo arrancaram, o Zé amarfanhando a multa no bolso do casaco, resmungando com a sua queda para atrair as desgraças e os problemas, o silêncio era de gelo.
Foram assim os primeiros quilómetros de reinício da viagem: um silêncio pesado, o Zé certamente arrependido da boleia dada a um gajo que nem tinha rendido conversa para um conto; o outro preocupado, sentindo-se o causador do infortúnio.
Até que, por fim, foi o outro quem decidiu falar:
- O senhor desculpe… o senhor foi tão amável… tudo isto por minha causa… tudo isto porque eu lhe disse que tinha pressa…embora eu nem seja casado… nem tenho mulher nenhuma às portas da morte…sou apenas um modesto carteirista, um profissional do gamanço…
Imagine-se o Zé, conduzindo irritado, ter de repente que pensar em que bolso estava guardada a carteira, onde é que tinha voltado a pôr os documentos do carro, o que é que estava na bagageira do carro quando a abrira, como era possível que tudo isto lhe estivesse a acontecer a ele, dar boleia a um carteirista.
- O senhor foi tão amável que eu, que sou um homem sério e agradecido, não posso deixar de o compensar à minha modesta maneira…
E levando a mão ao bolso, pousou delicadamente sobre o tablier do velho NSU o livro das multas, roubado ao polícia durante os abraços.
Não há duvida. Todas as profissões têm a sua ética...
077 - COMADRES
A política portuguesa está cada vez mais lamentável e sinuosa.
A prática da democracia não é fácil, é verdade.
Mas o que não pode ser é mais obscura que a ditadura onde, ao menos, os presos sabiam porque estavam ou continuavam detidos.
E está sendo.
Suspeito que um dia destes vamos ter grandes, sérias e desagradáveis surpresas.
Já aqui falei (num post posteriormente apagado) dos gabinetes ministeriais que se transformaram em centros de informação e contra-informação, onde tudo vale.
Não fui o único a referi-lo, mesmo nos jornais.
Falam-me agora da existência de stocks de reportagens, investigações, informações, etc., comprometedoras para algumas figuras públicas de alto relevo, cuja não publicação estaria a servir de caução para o seu silêncio, complacência, imobilismo.
Apetece perguntar: e se um dia "as comadres" se zangam ?
A prática da democracia não é fácil, é verdade.
Mas o que não pode ser é mais obscura que a ditadura onde, ao menos, os presos sabiam porque estavam ou continuavam detidos.
E está sendo.
Suspeito que um dia destes vamos ter grandes, sérias e desagradáveis surpresas.
Já aqui falei (num post posteriormente apagado) dos gabinetes ministeriais que se transformaram em centros de informação e contra-informação, onde tudo vale.
Não fui o único a referi-lo, mesmo nos jornais.
Falam-me agora da existência de stocks de reportagens, investigações, informações, etc., comprometedoras para algumas figuras públicas de alto relevo, cuja não publicação estaria a servir de caução para o seu silêncio, complacência, imobilismo.
Apetece perguntar: e se um dia "as comadres" se zangam ?
terça-feira, julho 29, 2003
076 - NOVA VERSÃO DOS VIOLINOS DE CHOPIN
Na minha vida de trabalho acontecem muitas vezes incidentes como este, com as mais variadas origens.
A maior parte das vezes esqueço-os, ignoro-os, não lhes dou importância, calo-me, não os revelo publicamente, poupando quem os pratica.
Mas este não resisto a contá-lo.
Que o próprio me perdoe.
Acabo de receber na Dom Quixote um cartão pessoal assinado pelo Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Dr. Pedro Santana Lopes, enviado pelo seu próprio Gabinete, agradecendo (com toda a simpatia) o envio do romance "Dom Casmurro", da autoria, como se sabe, do escritor brasileiro Machado de Assis (nascido em 1839 - falecido em 1908).
Tudo isto seria normal e não mereceria outros comentários.
Se o envelope não viesse dirigido ao... "Exmº. Senhor Machado de Assis, ao c/ das Publicações Dom Quixote, em Lisboa".
Quem constituirá o Gabinete do Presidente da Câmara de Lisboa para fazer coisas como estas ?
Meninas bonitas, já sabemos. Chamam-lhes as "santanetes"...
Fico curioso a ver como "esta" circulará...
A maior parte das vezes esqueço-os, ignoro-os, não lhes dou importância, calo-me, não os revelo publicamente, poupando quem os pratica.
Mas este não resisto a contá-lo.
Que o próprio me perdoe.
Acabo de receber na Dom Quixote um cartão pessoal assinado pelo Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Dr. Pedro Santana Lopes, enviado pelo seu próprio Gabinete, agradecendo (com toda a simpatia) o envio do romance "Dom Casmurro", da autoria, como se sabe, do escritor brasileiro Machado de Assis (nascido em 1839 - falecido em 1908).
Tudo isto seria normal e não mereceria outros comentários.
Se o envelope não viesse dirigido ao... "Exmº. Senhor Machado de Assis, ao c/ das Publicações Dom Quixote, em Lisboa".
Quem constituirá o Gabinete do Presidente da Câmara de Lisboa para fazer coisas como estas ?
Meninas bonitas, já sabemos. Chamam-lhes as "santanetes"...
Fico curioso a ver como "esta" circulará...
segunda-feira, julho 28, 2003
075 - SEM ASSUNTO
Lá fui a Tróia, este fim de semana, fazer companhia a Lídia Jorge na entrega do Prémio da APE ao seu romance "O Vento Assobiando nas Gruas". Estavam 3 canais de televisão, vários jornalistas, muitos fotógrafos, todos bloquearam o Presidente para saber noticias do Ministro da Defesa e das demissões que ciclicamente o assolam. Do Prémio, depois, quase não vi noticias. Nem por não haver muitas para encher os jornais...
Do "Acontece" fez-se o elogio fúnebre, desistente - já estamos por tudo. Eliminado a soco, dizia um engraçadinho.
O Presidente fez um discurso para animar as hostes, estava bem disposto, conversador. Falou contra a tristeza e o pessimismo.
Aproveitei para ir a casa de amigos e depois à praia.
Os jornais, como diz Manuel Falcão, pouco têm para dizer. Os blogues (desculpem...) estão na mesma, fora aqueles optimistas que se entretêm citando-se uns aos outros.
Esperemos então pelas notícias sobre os meios de comunicação da Lusomundo e a Impresa. Parece que para muito breve.
Do "Acontece" fez-se o elogio fúnebre, desistente - já estamos por tudo. Eliminado a soco, dizia um engraçadinho.
O Presidente fez um discurso para animar as hostes, estava bem disposto, conversador. Falou contra a tristeza e o pessimismo.
Aproveitei para ir a casa de amigos e depois à praia.
Os jornais, como diz Manuel Falcão, pouco têm para dizer. Os blogues (desculpem...) estão na mesma, fora aqueles optimistas que se entretêm citando-se uns aos outros.
Esperemos então pelas notícias sobre os meios de comunicação da Lusomundo e a Impresa. Parece que para muito breve.
quinta-feira, julho 24, 2003
074 - LEITURAS
Extenso artigo de Lynn Hirschberg no The New York Times Magazine de Domingo 20.07. , acerca do Sr. Peter Olson, chairman da Random House.
Perter Olson é, actualmente, o homem mais poderoso da edição em todo mundo.
E no entanto... no entanto não se conhece que alguma vez tenha publicado um livro ou descoberto algum novo escritor.
Espero ter sabido colocar bem o link, para aqueles que se interessarem.
Perter Olson é, actualmente, o homem mais poderoso da edição em todo mundo.
E no entanto... no entanto não se conhece que alguma vez tenha publicado um livro ou descoberto algum novo escritor.
Espero ter sabido colocar bem o link, para aqueles que se interessarem.
quarta-feira, julho 23, 2003
073 - OFERTAS DE LIVROS
Deparo com este post no blogue do "nosso Livreiro":
Primeiro foi a Relógio d'Água que me colocou na mailing list. Revi, assim, os livros que já me tinham sido apresentados pelo vendedor da editora há mais de quinze dias. Agradeço a desinteressada simpatia, e, já agora, estico um pouco a corda:Porque é que a estratégia não pode ser um pouco mais agressiva e me passam a oferecer um exemplar de cada novidade que sai? Uma ideia para o Textos da Contracapa e Oceanos meditarem também.
Por muito que vos custe a crer não se trata de uma situação original. Chegam-me com frequência, por mail, pedidos/sugestões similares. Como compreendem não sei enviar livros a entidades anónimas. Respondi portanto, mais ou menos deste modo, no caso presente:
Envie-me por favor o seu nome, endereço e local de trabalho.
Examinaremos a sua sugestão.
Os Vendedores da DQ, sempre que solicitados, já oferecem alguns dos nossos livros aos livreiros seus interlocutores.
A ideia é evitar duplicação de ofertas. O livro, como sabe, não é um objecto sem valor.
Saudações do
Primeiro foi a Relógio d'Água que me colocou na mailing list. Revi, assim, os livros que já me tinham sido apresentados pelo vendedor da editora há mais de quinze dias. Agradeço a desinteressada simpatia, e, já agora, estico um pouco a corda:Porque é que a estratégia não pode ser um pouco mais agressiva e me passam a oferecer um exemplar de cada novidade que sai? Uma ideia para o Textos da Contracapa e Oceanos meditarem também.
Por muito que vos custe a crer não se trata de uma situação original. Chegam-me com frequência, por mail, pedidos/sugestões similares. Como compreendem não sei enviar livros a entidades anónimas. Respondi portanto, mais ou menos deste modo, no caso presente:
Envie-me por favor o seu nome, endereço e local de trabalho.
Examinaremos a sua sugestão.
Os Vendedores da DQ, sempre que solicitados, já oferecem alguns dos nossos livros aos livreiros seus interlocutores.
A ideia é evitar duplicação de ofertas. O livro, como sabe, não é um objecto sem valor.
Saudações do
terça-feira, julho 22, 2003
072 - OS JORNAIS, OS LIVROS
Os jornais e as revistas descobriram ultimamente que os livros são uma boa forma de incentivar as suas vendas e ainda ganhar dinheiro. Temos então o Público, o DN, a Visão, a Fócus, o JL, o Expresso, o Jornal de Negócios, eu sei lá...
Porque será ? Os livros ajudam a vender jornais ?
Mas os jornais, em contrapartida, não procuram ajudar a vender os livros. Agora, o pouco espaço que antes dedicavam aos livros, passou a ser quase todo ocupado com os livros que a eles lhes interessa vender. Depoimentos de terceiros, entrevistas com os autores, comentários, reportagens, fotografias - atenções e destaques que os livros que vão saindo normalmente não lhes merecem.
Ou seja: saber fazer as coisas, eles sabem, quando querem ou lhes interessa, evidentemente.
Podiam ser um pouco mais equilibrados nesta sua distribuição de espaço.
Às vezes dizem-me: fazemos operações que são uteis à divulgação dos autores. Certamente, certamente... é Miguel Torga, ou Cardoso Pires, ou Saramago, quem beneficia da promoção de um jornal; não o jornal que se valoriza com a edição dos seus livros.
Porque será ? Os livros ajudam a vender jornais ?
Mas os jornais, em contrapartida, não procuram ajudar a vender os livros. Agora, o pouco espaço que antes dedicavam aos livros, passou a ser quase todo ocupado com os livros que a eles lhes interessa vender. Depoimentos de terceiros, entrevistas com os autores, comentários, reportagens, fotografias - atenções e destaques que os livros que vão saindo normalmente não lhes merecem.
Ou seja: saber fazer as coisas, eles sabem, quando querem ou lhes interessa, evidentemente.
Podiam ser um pouco mais equilibrados nesta sua distribuição de espaço.
Às vezes dizem-me: fazemos operações que são uteis à divulgação dos autores. Certamente, certamente... é Miguel Torga, ou Cardoso Pires, ou Saramago, quem beneficia da promoção de um jornal; não o jornal que se valoriza com a edição dos seus livros.
071 - ESCUTAS, 2
O PSD e o CDS já declararam considerar inoportuna a proposta de Santana Lopes de constituir uma comissão de inquérito parlamentar. O próprio Primeiro-Ministro já tinha dado a entender o mesmo na entrevista à RTP. O PS, muito ao seu estilo, diz que apoia mas não avança com nenhuma proposta.
Enfim, o que é preciso é não fazer ondas, não vão os juizes ficar incomodados.
Tudo na mesma; como a lesma - diria a minha avó...
Enfim, o que é preciso é não fazer ondas, não vão os juizes ficar incomodados.
Tudo na mesma; como a lesma - diria a minha avó...
070 - A EXPERIÊNCIA DE LER
Já me referi aqui a uma série de edições da Sudoeste que me tinham surpreendido pela qualidade. Acrescento duas que ainda mais reforçam essa verificação. E que duas! Uma é uma tradução de Sete Odes de Píndaro, de Maria Helena Rocha Pereira; outra, uma edição da Experiência de Ler de C.S. Lewis.
Neste post de hoje de Pacheco Pereira é referido um livro que não sabia estar publicado em Portugal: "A Experiência de Ler", de Carl S. Lewis. Em termos profissionais causa-me, aliás, alguma perplexidade esta edição; sabia que o livro iria ser publicado... mas por outra Editora...
Mas isso não importa, agora, para o caso.
Permito-me apenas referir que se trata de um texto importantissimo para todos aqueles que convivem de perto com os livros: com a escrita, com a leitura ou a crítica, com o ensino, com a edição, com as bibliotecas. Trata-se de um livro belíssimo que nos desvenda e explica o mundo maravilhoso da leitura. Recomendo vivamente, aproveitando a oportunidade da referência que lhe é feita.
Um daqueles livros que um editor tem desgosto por não ter sido ele a publicá-lo.
Corram a comprá-lo; eu vou fazer o mesmo com a esperança de que a tradução seja cuidada.
Neste post de hoje de Pacheco Pereira é referido um livro que não sabia estar publicado em Portugal: "A Experiência de Ler", de Carl S. Lewis. Em termos profissionais causa-me, aliás, alguma perplexidade esta edição; sabia que o livro iria ser publicado... mas por outra Editora...
Mas isso não importa, agora, para o caso.
Permito-me apenas referir que se trata de um texto importantissimo para todos aqueles que convivem de perto com os livros: com a escrita, com a leitura ou a crítica, com o ensino, com a edição, com as bibliotecas. Trata-se de um livro belíssimo que nos desvenda e explica o mundo maravilhoso da leitura. Recomendo vivamente, aproveitando a oportunidade da referência que lhe é feita.
Um daqueles livros que um editor tem desgosto por não ter sido ele a publicá-lo.
Corram a comprá-lo; eu vou fazer o mesmo com a esperança de que a tradução seja cuidada.
segunda-feira, julho 21, 2003
069 - ESCUTAS TELEFÓNICAS, SISTEMA JUDICIAL, ETC.
Ontem, na RTP 1, Pedro Santana Lopes sugeriu a abertura de uma comissão parlamentar de inquérito à questão das escutas telefónicas. Apoio inteiramente, em termos de opinião (já que não me resta outro "poder").
É a primeira sugestão concreta e aceitável que vi a este respeito. Acho mesmo que os deputados têm a obrigação unanime de a viabilizar - afinal têm sido eles quem em primeiro lugar têm estado em causa.
A não ser que se pretenda, como disse Pedro Cunha e Silva no DN de 20.07., que a justiça portuguesa continue a transformar-se num talk-show.
É a primeira sugestão concreta e aceitável que vi a este respeito. Acho mesmo que os deputados têm a obrigação unanime de a viabilizar - afinal têm sido eles quem em primeiro lugar têm estado em causa.
A não ser que se pretenda, como disse Pedro Cunha e Silva no DN de 20.07., que a justiça portuguesa continue a transformar-se num talk-show.
domingo, julho 20, 2003
068 - TOP LIVROS, PONTO DE INTERROGAÇÃO
Mesmo conhecendo a falta de rigor da maior parte destas listas, passo em revista os Tops publicados durante o fim de semana. Deles retiro alguns títulos, omitindo intencionalmente os autores e editores:
José Mourinho; Não há lugar para Divorciadas; Onze Minutos; Porque não Consigo Parar de Comer; Dietas sem Dieta; Absolutamente Tias; Este Jesus Cristo Que vos Fala; etc.
Convenhamos que se fica um pouco incrédulo acerca das preferências de leitura dos portugueses, ou das influências do futebol, da televisão, ou das revistas de entretenimento nas suas escolhas literárias.
Sei também que estes não são os únicos títulos que se vendem bem. Felizmente. Existem muitos outros títulos que uma análise mais fina nos levaria a incluir no final destas listas. Não aparecem nas listas porque as suas vendas se distanciam muito das outras. Alguma vez lá chegarão? Porque as diferenças (acreditem) são ainda um abismo. Um enorme abismo, por muito que alguns julguem que não...
O que interessa é que as pessoas leiam - digo eu às vezes - estes livros representam uma conquista relativamente a outras formas menos interessantes de ocupação dos tempos livres (ver televisão, por exemplo, os programas do Herman, Os Malucos do Riso, as Telenovelas, os Big-Brothers, o Baião, etc.). Criam hábitos de leitura que se vão enraizando lentamente. Que levarão as pessoas, gradualmente, a procurar outro tipo de livros, a encetar a experiência das suas próprias escolhas, afinando o seu sentido crítico.
Será?
Se se não fizer mais nada será isso o que vai acontecer?
Pode o Ministério da Cultura continuar a dormir sossegado? O Secretário a assobiar, o Ministro a julgar que estas coisas devem continuar entregues exclusivamente às chamadas leis de funcionamento do mercado?
O que são as leis do mercado na área da comunicação e da cultura? O que representa deixar que o mercado funcione livremente na área da comunicação e da cultura? O Big-Brother?
Não caberá ao Estado intervir nessa "liberdade" de funcionamento do mercado, através do apoio às formas de cultura ditas minoritárias, desenvolvendo o gosto pela leitura nas escolas, construindo mais bibliotecas, apoiando o cinema, o teatro, a musica, as artes em geral?
Só se apoia o que já tem mercado? Como se formam os novos públicos?
Hoje deu-me para os pontos de interrogação.
José Mourinho; Não há lugar para Divorciadas; Onze Minutos; Porque não Consigo Parar de Comer; Dietas sem Dieta; Absolutamente Tias; Este Jesus Cristo Que vos Fala; etc.
Convenhamos que se fica um pouco incrédulo acerca das preferências de leitura dos portugueses, ou das influências do futebol, da televisão, ou das revistas de entretenimento nas suas escolhas literárias.
Sei também que estes não são os únicos títulos que se vendem bem. Felizmente. Existem muitos outros títulos que uma análise mais fina nos levaria a incluir no final destas listas. Não aparecem nas listas porque as suas vendas se distanciam muito das outras. Alguma vez lá chegarão? Porque as diferenças (acreditem) são ainda um abismo. Um enorme abismo, por muito que alguns julguem que não...
O que interessa é que as pessoas leiam - digo eu às vezes - estes livros representam uma conquista relativamente a outras formas menos interessantes de ocupação dos tempos livres (ver televisão, por exemplo, os programas do Herman, Os Malucos do Riso, as Telenovelas, os Big-Brothers, o Baião, etc.). Criam hábitos de leitura que se vão enraizando lentamente. Que levarão as pessoas, gradualmente, a procurar outro tipo de livros, a encetar a experiência das suas próprias escolhas, afinando o seu sentido crítico.
Será?
Se se não fizer mais nada será isso o que vai acontecer?
Pode o Ministério da Cultura continuar a dormir sossegado? O Secretário a assobiar, o Ministro a julgar que estas coisas devem continuar entregues exclusivamente às chamadas leis de funcionamento do mercado?
O que são as leis do mercado na área da comunicação e da cultura? O que representa deixar que o mercado funcione livremente na área da comunicação e da cultura? O Big-Brother?
Não caberá ao Estado intervir nessa "liberdade" de funcionamento do mercado, através do apoio às formas de cultura ditas minoritárias, desenvolvendo o gosto pela leitura nas escolas, construindo mais bibliotecas, apoiando o cinema, o teatro, a musica, as artes em geral?
Só se apoia o que já tem mercado? Como se formam os novos públicos?
Hoje deu-me para os pontos de interrogação.
067 - AS PESSOAS...
Ao decidir eliminar os Comentários neste blogue (já o deveria ter feito há mais tempo... provavelmente), deixo aqui a citação de um post de Pacheco Pereira, que vem bem a propósito:
Nos blogues …
… as pessoas zangam-se muito, são muito piegas, são malcriadas, são gentis, são espertas, são espertinhas, são parvas, copiam, fazem de conta que não copiam, irritam-se, reconciliam-se, cuidam muito da sua identidade, dão-se todas aos estranhos, representam, representam-se, são azedas, são poucas vezes alegres, são tristes, são tristonhas, são fúteis, são totalmente fúteis, têm interesse, têm interesses, têm egos gigantescos, têm egos pequeninos, têm que “dizer-qualquer-coisismo” , deixam cair muitos nomes, deixam cair muitos livros, parece que lêem muito, lêem muito, não lêem quase nada, nunca vêem televisão, têm graça, são engraçadinhas, têm tribos, têm fúrias, têm territórios, estão sozinhas, estão tanto mais sozinhas quanto mais acompanhadas, têm alguns pais, começam a ter filhos, têm maridos, não têm amantes, têm “o que escrevo é para ti”, têm “o que escrevo é só para ti”, têm “o que escrevo é só para ti”, mas é só para mim , ou para o outro(a), não têm muita paciência, têm pressa de chegar a algum lado, têm a esperança de chegar a qualquer lado, estão convictos que não vão chegar a lado nenhum, têm quereres, têm birras, são meli-melo, são assim …
… porque se calhar é assim na vida toda.
E assino por baixo (se ele me deixar...) o Texto Longo do Francisco José Viegas, publicado no Aviz, que só li depois.
Entre um texto e o outro texto, fica tudo dito.
Para quê acrescentar mais palavras ?
Nos blogues …
… as pessoas zangam-se muito, são muito piegas, são malcriadas, são gentis, são espertas, são espertinhas, são parvas, copiam, fazem de conta que não copiam, irritam-se, reconciliam-se, cuidam muito da sua identidade, dão-se todas aos estranhos, representam, representam-se, são azedas, são poucas vezes alegres, são tristes, são tristonhas, são fúteis, são totalmente fúteis, têm interesse, têm interesses, têm egos gigantescos, têm egos pequeninos, têm que “dizer-qualquer-coisismo” , deixam cair muitos nomes, deixam cair muitos livros, parece que lêem muito, lêem muito, não lêem quase nada, nunca vêem televisão, têm graça, são engraçadinhas, têm tribos, têm fúrias, têm territórios, estão sozinhas, estão tanto mais sozinhas quanto mais acompanhadas, têm alguns pais, começam a ter filhos, têm maridos, não têm amantes, têm “o que escrevo é para ti”, têm “o que escrevo é só para ti”, têm “o que escrevo é só para ti”, mas é só para mim , ou para o outro(a), não têm muita paciência, têm pressa de chegar a algum lado, têm a esperança de chegar a qualquer lado, estão convictos que não vão chegar a lado nenhum, têm quereres, têm birras, são meli-melo, são assim …
… porque se calhar é assim na vida toda.
E assino por baixo (se ele me deixar...) o Texto Longo do Francisco José Viegas, publicado no Aviz, que só li depois.
Entre um texto e o outro texto, fica tudo dito.
Para quê acrescentar mais palavras ?
sábado, julho 19, 2003
066 - AS FÈRIAS
Começa assim a crónica de hoje de Clara Ferreira Alves, na revista do Expresso:
"Uma pessoa olha em volta na praia e não vê um inocente lusitano a ler um livro. Podia ser um daqueles livros leves, ou ultraleves, ou quadrados, ou mesmo quadradões, mas, caramba, seria um livro, um livrinho, essa coisa recheada de páginas e, com sorte, de algumas ideias. Nada. (...) Nem um Paulo Coelho, para disfarçar."
(...)
"Os portugueses não percebem que enquanto não aprenderem a ler, aprenderem português e matemática, aprenderem a pensar e a abstrair, nunca passarão disto, da crise, da baixa produtividade, do subsídio, da cauda da Europa, da cepa torta. Não percebem que têm de se esforçar, que ler é como andar de "jet ski", é preciso aprender, tentar, errar, tentar de novo, até chegar ao prazer de ler."
Não julgo necessário comentar.
"Uma pessoa olha em volta na praia e não vê um inocente lusitano a ler um livro. Podia ser um daqueles livros leves, ou ultraleves, ou quadrados, ou mesmo quadradões, mas, caramba, seria um livro, um livrinho, essa coisa recheada de páginas e, com sorte, de algumas ideias. Nada. (...) Nem um Paulo Coelho, para disfarçar."
(...)
"Os portugueses não percebem que enquanto não aprenderem a ler, aprenderem português e matemática, aprenderem a pensar e a abstrair, nunca passarão disto, da crise, da baixa produtividade, do subsídio, da cauda da Europa, da cepa torta. Não percebem que têm de se esforçar, que ler é como andar de "jet ski", é preciso aprender, tentar, errar, tentar de novo, até chegar ao prazer de ler."
Não julgo necessário comentar.
065 - JOSÉ CARDOSO PIRES
A Montanha Mágica, reproduz hoje excertos do Lisboa, Livro de Bordo, de José Cardoso Pires.
Textos que brilham ao sol que faz lá fora. Como dizia o Fernando Assis Pacheco: se fosse Deus parava o sol sobre Lisboa.
Excelente oportunidade para aqui reproduzir este parágrafo de um post anterior (041), dedicado a José Cardoso Pires:
Quando morreu, o Presidente da Câmara de Lisboa (João Soares), a cidade que ele amava e tanto lhe deve, apressou-se a prometer uma rua digna do seu nome, a Biblioteca Publica da Freguesia de Alvalade também com o seu nome e, dentro desta, uma sala onde depositar os seus livros, os seus arquivos, os seus manuscritos, a sua correspondência, de modo a permitir um acesso fácil a todos quantos quisessem estudar a sua obra.
Não consigo perdoar que nenhuma dessas promessas tenha sido cumprida, agora que se cumprem cinco anos após a sua morte. E isto, apesar da disponibilidade da família para ceder todos os materiais e apoiar todas as iniciativas nesse sentido.
É verdadeiramente indesculpável.
Textos que brilham ao sol que faz lá fora. Como dizia o Fernando Assis Pacheco: se fosse Deus parava o sol sobre Lisboa.
Excelente oportunidade para aqui reproduzir este parágrafo de um post anterior (041), dedicado a José Cardoso Pires:
Quando morreu, o Presidente da Câmara de Lisboa (João Soares), a cidade que ele amava e tanto lhe deve, apressou-se a prometer uma rua digna do seu nome, a Biblioteca Publica da Freguesia de Alvalade também com o seu nome e, dentro desta, uma sala onde depositar os seus livros, os seus arquivos, os seus manuscritos, a sua correspondência, de modo a permitir um acesso fácil a todos quantos quisessem estudar a sua obra.
Não consigo perdoar que nenhuma dessas promessas tenha sido cumprida, agora que se cumprem cinco anos após a sua morte. E isto, apesar da disponibilidade da família para ceder todos os materiais e apoiar todas as iniciativas nesse sentido.
É verdadeiramente indesculpável.
quinta-feira, julho 17, 2003
064 - AUTORES, 5
Hoje, parece que o contador de visitas decidiu também entrar de férias.
Tentarei fazer como ele. Virei aqui de vez em quando, para não "perder o pé". Ou "a mão".
Depois dos breves textos sobre José Cardoso Pires, Vergílio Ferreira, José Gomes Ferreira, Abelaira, arquivo agora um texto sobre António Lobo Antunes, publicado no DNA de 15.02.2003.
Não são textos analíticos ou de comentário das suas obras, isso cabe à critica fazê-lo. São textos memorialistas (que os criticos não podem evidentemente escrever). São textos de um editor, alguém que escolheu trabalhar com eles e faz da divulgação das suas obras, com prazer, uma parte importante da sua vida.
António Lobo Antunes
“a única forma de abordar os romances que escrevo é apanhá-los do mesmo modo que se apanha uma doença.”
in Segundo Livro de Crónicas
Nunca nos tínhamos encontrado antes. Mas foi por volta do final de 1982 que o António entrou pela primeira vez no meu gabinete de trabalho, ainda na pequena vivenda da rua Luciano Cordeiro:
- Chamo-me António e gostava de publicar nesta editora...
disse ele apertando-me a mão com força ao mesmo tempo que fazia aquele sorriso educado, de menino envergonhado, em que quase só se lhe vê os olhos.
Sentámo-nos a conversar nos mesmos maples de couro envelhecido, onde antes namoravam Snu e Sá Carneiro, herança que eu conservo com o maior cuidado e emoção.
Nessa altura ele era já um escritor famoso, tinha publicado os seus quatro primeiros romances, iniciava a sua carreira internacional com a tradução de Os Cus de Judas na Random House, tinha um Agente importante nos Estados Unidos, a comunicação social apresentava-o como um dos mais interessantes e promissores escritores da sua geração, os seus livros atingiam índices de leitura invulgares para a época, reeditando-se em sucessão.
António cultivava simultaneamente um perfil de austeridade e de irreverência. Ao mesmo tempo que ia dizendo aos funcionários da editora para não o tratarem pelos seus apelidos ou por “senhor doutor”,
- ...chamo-me António...
completava de imediato
- Lobo Antunes há muitos... eu sou o António...
para logo comentar, olhando as fotos fixadas na parede da minha sala de trabalho:
- ...mas esta gente são todos escritores?
Depois das primeiras conversas, algo monossilábicas, havia então que acertar um contrato para a publicação dos seus livros futuros. Incomodado com o comportamento da sua anterior editora, António quis que tudo fosse feito com advogados, profissionalmente, tratava-se de definir e proteger o seu trabalho. Escolheu o apoio do Miguel Sousa Tavares com quem tivemos várias sessões de trabalho, negociações que não foram simples, queria que tudo ficasse claro à partida para que não viéssemos a perturbar a nossa relação, no futuro, discutindo questões contratuais.
Já não me lembro quando começámos a considerar-nos amigos, mas sei que foi rápido e fulminante. Iniciámos o trabalho publicando e lançando simultaneamente os seus quatro romances iniciais, que ainda hoje considero como fazendo parte de um ciclo muito bem definido da sua obra, e preparámo-nos para lançar quase de seguida esse romance extraordinário que é o Fado Alexandrino, título que o António recebeu oferecido do Dinis Machado que, por essa altura, estivera uma temporada alojado na sua casa de Alcoitão.
Eu passava muitos fins-de-semana em Albarraque, numa casa emprestada pelo José Gomes Ferreira, e dada a proximidade entre as duas casas o nosso convívio estreitou-se rapidamente em longas tardes e noites de conversa.
Foi assim que tudo começou. Publicámos desde essa altura um novo romance com um intervalo médio de dois anos. Já lá vão onze, depois desses quatro primeiros, para além de dois livros de crónicas.
- Publicámos...
dizia ele, referindo-se ao nosso trabalho, sempre no plural.
- Temos tido boas críticas... esgotámos rapidamente esta edição... tivemos este prémio... vamos ser traduzidos na Alemanha... temos mais algum livro para reeditar?... parece que as pessoas gostaram desta redacção...
Como se quisesse repartir comigo uma parte do trabalho que evidentemente só ele realizava.
Com a edição dos seus livros aprendi a inverter a importância gráfica, na capa das edições, entre o nome do autor e o título do livro. Até aí era usual os editores atribuírem importância predominante ao título do livro: dizia-se A Selva, Domingo à Tarde, Aparição, A Sibila, O Delfim. Depois disso passaram a ser as Obras de..., inversão que ainda hoje permanece como moda.
Em seguida iniciou-se o período a que chamo das nossas itinerâncias e vagabundagens. As idas regulares à Feira do Livro do Porto, continuando o António a dar autógrafos, pela noite dentro, já com a Feira encerrada e as luzes apagadas, as idas a Coimbra, Braga, Galiza (convidados pelo Victor Freixanes e pelo Manuel Bragado das edições Xerais), os encontros em Frankfurt, Paris (os jantares em casa do editor Christian Bourgois), Madrid (com a equipa da Siruella e o seu editor Jacobo Stuart), Barcelona, etc. Ainda hoje destacamos, sempre que falamos disso, uma prolongada viagem pelas Universidades da Galiza, na companhia de José Cardoso Pires, conduzidos pelo inenarrável Manolo Batán das Ediciones Xerais, a quem chamávamos Walter Mathau tão evidentes eram as semelhanças e tiques de comportamento, conversando, sempre contando histórias, divertindo-nos, falando sério quando era preciso.
Mas apesar da boa disposição e da amizade, o António “não brinca em serviço”, o seu trabalho é um trabalho sério, a literatura é a coisa mais importante da sua vida. Creio não conhecer ninguém que, como ele, chegue a trabalhar, seguidas, mais do que doze horas por dia.
Com o evoluir do seu trabalho literário e o aumento dos rendimentos dele provenientes, o António foi abandonando, deliberadamente, um a um, os seus compromissos na área da medicina, até conquistar uma situação de dedicação exclusiva à literatura. Percebeu que era isso o que tinha de fazer, percebeu cedo que era isso o que o trabalho da escrita exigia dele.
- Não se pode decidir ser escritor, de repente, de um dia para outro...por exemplo, aos 40 anos... -
dizia ele muitas vezes.
- É-se escritor, quer dizer, não se consegue fazer outra coisa senão escrever... escreve-se permanentemente, muitas horas diárias. Um romance exige concentração total. Não se pensa noutra coisa. Tem de se escrever a vida inteira...
ou ainda
- Ninguém pode escrever um romance importante antes dos 40 anos. O romance é uma arte particularmente difícil. Antes dessa idade não se tem a experiência necessária. Nem da vida nem, o que é mais importante, do trabalho da escrita. Tem de se trabalhar muito...
E assim fazia, trabalhando longas horas diárias, sem interrupção, ano após ano, preparando minuciosos esquemas para cada livro, capitulo a capitulo, que colava nas paredes, um quadrado para cada capitulo, no interior de cada quadrado o esquema do capitulo, o conjunto fazendo como que a casca de um caracol, em circulo, construído de dentro para fora. Quando começava já sabia exactamente o que ia fazer.
- Este livro terá 3 partes, cada uma com 8 capítulos... o capítulo mais extenso e difícil vai ser o terceiro da segunda parte... espero ter a primeira versão concluída dentro de oito meses.
Recordo um ano, já mais recente, em que passámos juntos as férias do Verão numa casa próximo do mar. Enquanto eu, no início da manhã, caminhava até à praia, displicente, com um livro debaixo do braço, o António ficava em casa, fechado, sozinho, escrevendo, quase não comia. Durante as duas semanas em que aí estivemos não saiu de casa uma única vez, não foi sequer olhar o mar, não mexeu no carro, não procurou ninguém. Lia e escrevia. Permanentemente.
Ao final da tarde, sentado a uma mesa à sombra do jardim, aguardava o nosso regresso. Passava-me então as folhas manuscritas, acompanhava a leitura espreitando por cima do meu ombro, medindo cuidadosamente todas as minhas reacções, lendo de imediato as minhas notas.
- Tem de se escrever a vida inteira... – dizia.
Tentarei fazer como ele. Virei aqui de vez em quando, para não "perder o pé". Ou "a mão".
Depois dos breves textos sobre José Cardoso Pires, Vergílio Ferreira, José Gomes Ferreira, Abelaira, arquivo agora um texto sobre António Lobo Antunes, publicado no DNA de 15.02.2003.
Não são textos analíticos ou de comentário das suas obras, isso cabe à critica fazê-lo. São textos memorialistas (que os criticos não podem evidentemente escrever). São textos de um editor, alguém que escolheu trabalhar com eles e faz da divulgação das suas obras, com prazer, uma parte importante da sua vida.
António Lobo Antunes
“a única forma de abordar os romances que escrevo é apanhá-los do mesmo modo que se apanha uma doença.”
in Segundo Livro de Crónicas
Nunca nos tínhamos encontrado antes. Mas foi por volta do final de 1982 que o António entrou pela primeira vez no meu gabinete de trabalho, ainda na pequena vivenda da rua Luciano Cordeiro:
- Chamo-me António e gostava de publicar nesta editora...
disse ele apertando-me a mão com força ao mesmo tempo que fazia aquele sorriso educado, de menino envergonhado, em que quase só se lhe vê os olhos.
Sentámo-nos a conversar nos mesmos maples de couro envelhecido, onde antes namoravam Snu e Sá Carneiro, herança que eu conservo com o maior cuidado e emoção.
Nessa altura ele era já um escritor famoso, tinha publicado os seus quatro primeiros romances, iniciava a sua carreira internacional com a tradução de Os Cus de Judas na Random House, tinha um Agente importante nos Estados Unidos, a comunicação social apresentava-o como um dos mais interessantes e promissores escritores da sua geração, os seus livros atingiam índices de leitura invulgares para a época, reeditando-se em sucessão.
António cultivava simultaneamente um perfil de austeridade e de irreverência. Ao mesmo tempo que ia dizendo aos funcionários da editora para não o tratarem pelos seus apelidos ou por “senhor doutor”,
- ...chamo-me António...
completava de imediato
- Lobo Antunes há muitos... eu sou o António...
para logo comentar, olhando as fotos fixadas na parede da minha sala de trabalho:
- ...mas esta gente são todos escritores?
Depois das primeiras conversas, algo monossilábicas, havia então que acertar um contrato para a publicação dos seus livros futuros. Incomodado com o comportamento da sua anterior editora, António quis que tudo fosse feito com advogados, profissionalmente, tratava-se de definir e proteger o seu trabalho. Escolheu o apoio do Miguel Sousa Tavares com quem tivemos várias sessões de trabalho, negociações que não foram simples, queria que tudo ficasse claro à partida para que não viéssemos a perturbar a nossa relação, no futuro, discutindo questões contratuais.
Já não me lembro quando começámos a considerar-nos amigos, mas sei que foi rápido e fulminante. Iniciámos o trabalho publicando e lançando simultaneamente os seus quatro romances iniciais, que ainda hoje considero como fazendo parte de um ciclo muito bem definido da sua obra, e preparámo-nos para lançar quase de seguida esse romance extraordinário que é o Fado Alexandrino, título que o António recebeu oferecido do Dinis Machado que, por essa altura, estivera uma temporada alojado na sua casa de Alcoitão.
Eu passava muitos fins-de-semana em Albarraque, numa casa emprestada pelo José Gomes Ferreira, e dada a proximidade entre as duas casas o nosso convívio estreitou-se rapidamente em longas tardes e noites de conversa.
Foi assim que tudo começou. Publicámos desde essa altura um novo romance com um intervalo médio de dois anos. Já lá vão onze, depois desses quatro primeiros, para além de dois livros de crónicas.
- Publicámos...
dizia ele, referindo-se ao nosso trabalho, sempre no plural.
- Temos tido boas críticas... esgotámos rapidamente esta edição... tivemos este prémio... vamos ser traduzidos na Alemanha... temos mais algum livro para reeditar?... parece que as pessoas gostaram desta redacção...
Como se quisesse repartir comigo uma parte do trabalho que evidentemente só ele realizava.
Com a edição dos seus livros aprendi a inverter a importância gráfica, na capa das edições, entre o nome do autor e o título do livro. Até aí era usual os editores atribuírem importância predominante ao título do livro: dizia-se A Selva, Domingo à Tarde, Aparição, A Sibila, O Delfim. Depois disso passaram a ser as Obras de..., inversão que ainda hoje permanece como moda.
Em seguida iniciou-se o período a que chamo das nossas itinerâncias e vagabundagens. As idas regulares à Feira do Livro do Porto, continuando o António a dar autógrafos, pela noite dentro, já com a Feira encerrada e as luzes apagadas, as idas a Coimbra, Braga, Galiza (convidados pelo Victor Freixanes e pelo Manuel Bragado das edições Xerais), os encontros em Frankfurt, Paris (os jantares em casa do editor Christian Bourgois), Madrid (com a equipa da Siruella e o seu editor Jacobo Stuart), Barcelona, etc. Ainda hoje destacamos, sempre que falamos disso, uma prolongada viagem pelas Universidades da Galiza, na companhia de José Cardoso Pires, conduzidos pelo inenarrável Manolo Batán das Ediciones Xerais, a quem chamávamos Walter Mathau tão evidentes eram as semelhanças e tiques de comportamento, conversando, sempre contando histórias, divertindo-nos, falando sério quando era preciso.
Mas apesar da boa disposição e da amizade, o António “não brinca em serviço”, o seu trabalho é um trabalho sério, a literatura é a coisa mais importante da sua vida. Creio não conhecer ninguém que, como ele, chegue a trabalhar, seguidas, mais do que doze horas por dia.
Com o evoluir do seu trabalho literário e o aumento dos rendimentos dele provenientes, o António foi abandonando, deliberadamente, um a um, os seus compromissos na área da medicina, até conquistar uma situação de dedicação exclusiva à literatura. Percebeu que era isso o que tinha de fazer, percebeu cedo que era isso o que o trabalho da escrita exigia dele.
- Não se pode decidir ser escritor, de repente, de um dia para outro...por exemplo, aos 40 anos... -
dizia ele muitas vezes.
- É-se escritor, quer dizer, não se consegue fazer outra coisa senão escrever... escreve-se permanentemente, muitas horas diárias. Um romance exige concentração total. Não se pensa noutra coisa. Tem de se escrever a vida inteira...
ou ainda
- Ninguém pode escrever um romance importante antes dos 40 anos. O romance é uma arte particularmente difícil. Antes dessa idade não se tem a experiência necessária. Nem da vida nem, o que é mais importante, do trabalho da escrita. Tem de se trabalhar muito...
E assim fazia, trabalhando longas horas diárias, sem interrupção, ano após ano, preparando minuciosos esquemas para cada livro, capitulo a capitulo, que colava nas paredes, um quadrado para cada capitulo, no interior de cada quadrado o esquema do capitulo, o conjunto fazendo como que a casca de um caracol, em circulo, construído de dentro para fora. Quando começava já sabia exactamente o que ia fazer.
- Este livro terá 3 partes, cada uma com 8 capítulos... o capítulo mais extenso e difícil vai ser o terceiro da segunda parte... espero ter a primeira versão concluída dentro de oito meses.
Recordo um ano, já mais recente, em que passámos juntos as férias do Verão numa casa próximo do mar. Enquanto eu, no início da manhã, caminhava até à praia, displicente, com um livro debaixo do braço, o António ficava em casa, fechado, sozinho, escrevendo, quase não comia. Durante as duas semanas em que aí estivemos não saiu de casa uma única vez, não foi sequer olhar o mar, não mexeu no carro, não procurou ninguém. Lia e escrevia. Permanentemente.
Ao final da tarde, sentado a uma mesa à sombra do jardim, aguardava o nosso regresso. Passava-me então as folhas manuscritas, acompanhava a leitura espreitando por cima do meu ombro, medindo cuidadosamente todas as minhas reacções, lendo de imediato as minhas notas.
- Tem de se escrever a vida inteira... – dizia.
quarta-feira, julho 16, 2003
063 - AUTORES, 4
Quase de partida para férias, sem paciência para responder aos disparatados comentários e mails com que me inundam a caixa de correio, regresso ao arquivo de textos sobre os Autores.
Desta vez sobre José Gomes Ferreira, publicado no DNA de 03.05.2003.
Aqui fica, para aqueles que ainda o lembram.
JOSÉ GOMES FERREIRA
Não fiques para trás, ó companheiro (...)
Às seis da tarde costumávamos descer o Chiado até ao Metro. Ele aparecia na Moraes quase sempre de surpresa, trabalhávamos o que havia para trabalhar, contávamos histórias um ou outro, conversávamos de tudo e de nada e, pelo fim da tarde, o seu braço enfiado no meu, cabelo branco ao vento, uma velha gabardina desabotoada, descíamos o Chiado a pé até ao Metro.
O Zé Gomes adorava ser reconhecido e cumprimentado nas ruas. Sorria à esquerda e à direita, alisava com a mão, vaidoso, a sua bonita cabeleira branca, enfiava o braço no meu e, muito direito, baixando levemente a cabeça, cumprimentava com elegância e educação todos os que o saudavam.
- Quem é esta? – perguntava-me em voz baixa – Você conhece?
- Ó Zé Gomes, sei lá! Não posso conhecer todas as pessoas que o cumprimentam...
- Então porque é que ela nos cumprimentou?
- Ora essa... porque conhece os seus livros, certamente, porque o viu na televisão...
Ele ficava vaidoso e embevecido. Via-se que sorria para dentro.
Embora procurasse gerir a situação com um certo distanciamento adorava este ritual de ser reconhecido e cumprimentado nas ruas. Sentia-se de facto como um poeta do povo. E gostava que “o povo” lhe reconhecesse isso.
- Há dias um pai atirou-me a criança para o colo e pediu-me para tirar uma fotografia com ela... Já pareço o Gomes Leal...
Eram os leitores anónimos, pessoas de todas as idades, homens ou mulheres, simples conhecidos de quem seria impossível recordar-se.
A sua poesia era cantada nas ruas e na rádio, nos comícios políticos, em espectáculos, a sua imagem aparecia frequentemente na televisão, nos jornais, em cartazes, todos o conheciam, todos sabiam de cor muitos dos seus poemas. Os seus livros, a ficção, as crónicas, a poesia, atingiam tiragens e vendas impensáveis. Estávamos na segunda metade da década de setenta. Todos sabiam quem era. Todos o respeitavam. Todos sabiam de cor os seus poemas.
Confesso que não voltei a encontrar até hoje, entre os muitos escritores com quem tenho trabalhado, um fenómeno de adesão popular tão impressionante. O Zé Gomes era um símbolo, o Presidente da Associação Portuguesa de Escritores, o poeta do povo, o “poeta militante”, como ele gostava de se chamar a si próprio.
Como pudemos esquecê-lo? Porque deixámos de o ler? – por que, para um escritor, ser esquecido é termos deixado de o ler. Mas a verdade é que fomos deixando de o ler. Lentamente, como o bicho corroendo a madeira, distraídos e desatentos, deixando que a poeira do tempo fosse pousando sobre a sua obra. “A borracha implacável do Grande Livro da Glória – há-de chegar um dia a minha vez, vai ver...” – costumava ele dizer.
Talvez alguns continuem a rever na televisão a Aldeia da Roupa Branca ignorando que é dele o texto do filme, que são dele as letras de muitas canções musicadas por Lopes Graça, as legendas de muito filmes da época em tradução assinada por Álvaro Gomes. Os seus livros. Sobretudo os seus livros, que hoje desapareceram das escolas (como aconteceu, aliás, com tanta outra literatura contemporânea), onde os jovens aprendiam a ler "As Aventuras de João Sem Medo" e a recitar e a interpretar os seus poemas.
Nascido em 1900, José Gomes Ferreira atravessou o século vinte como uma nuvem, como o zepelim prateado que começou a voar no dia em que ele abriu os olhos. “Sou do tamanho do século, assisti a tudo ou quase tudo...”. À morte do Rei, ao começo da Republica, duas guerras, à carnificina e à barbárie nazi, aos campos de concentração, à primeira e infame experiência atómica, ao inicio das ditaduras, ao silêncio que nos impuseram, às madrugadas de luz e ao anoitecer das esperanças.
Espanto-me – escreveu ele – do que afinal sempre espantou os poetas de todos os séculos. De haver ao mesmo tempo injustiças e estrelas...
Comemorou-se no ano 2000 o centenário do seu nascimento. Apesar dos esforços e do empenho dos seus filhos Raul José e Alexandre e de uns quantos amigos, a verdade é que tudo o que foi feito ficou aquém do que ele merecia, da ternura e do envolvimento popular visível nessas tardes em que descíamos o Chiado, juntos, de braço dado, até ao Metro.
Quando finalmente nos despedíamos, no Rossio, junto às escadas do Metro, havia ainda outra cena que se repetia.
- Onde terá posto a Rosalia a nota de 20 escudos que me deu antes de sair de casa?
e revolvia os bolsos, envergonhado, até a encontrar, dobrada em quatro, envelhecida, no bolso do casaco.
Zé Gomes não usava dinheiro, nem chaves, nem tabaco, suponho que nem relógio. Perderia tudo; ou não necessitava de nenhum desses objectos. Por isso Rosalia lhe entregava apenas aquela nota de 20 escudos cuidadosamente dobrada em quatro mas que ele tinha sempre dificuldade em encontrar. Dos seus bolsos, nesses momentos, saíam apenas poemas manuscritos, rabiscados e emendados nos mais inacreditáveis pedaços de papel.
Como quando me aparecia na editora para entregar as provas de um livro depois de revistas por si. Emendas sobre emendas, rasuras sobre rasuras, riscos a toda a largura da página, folhas rasgadas, palavras ininteligíveis.
- Ó Zé Gomes, como é que eu posso agora enviar isto para a Gráfica... – ralhava-lhe eu, tentando ser convencional.
- Você desculpe, mas eu fui revendo as provas enquanto passeava de eléctrico pela cidade... – dizia-me ele, baixando os olhos, como um menino apanhado numa falta grave –... e aquilo treme que se farta... Faça-me lá o favor de voltar a ver tudo outra vez com os seus olhos mágicos.
Para as gralhas, claro.
Quando faleceu, em Fevereiro de 1985 (vai fazer em breve 20 anos...), no dia em que, do outro lado da cidade, também faleceu o escritor Nuno Bragança, Lisboa colocou-se inteira aos seus pés.
Morreu o poeta...
Pela pequena sala da Casa da Imprensa, apesar da chuva que caía, passou inteira uma multidão. O Largo de Camões encheu como num dia de manifestação.
Como pudemos esquecê-lo assim, tão depressa?
Como permitimos que se esqueçam tão breve aqueles que afinal moldaram de sonhos a nossa vida?
Se eu pudesse iluminar por dentro as palavras de todos os dias (...)
Desta vez sobre José Gomes Ferreira, publicado no DNA de 03.05.2003.
Aqui fica, para aqueles que ainda o lembram.
JOSÉ GOMES FERREIRA
Não fiques para trás, ó companheiro (...)
Às seis da tarde costumávamos descer o Chiado até ao Metro. Ele aparecia na Moraes quase sempre de surpresa, trabalhávamos o que havia para trabalhar, contávamos histórias um ou outro, conversávamos de tudo e de nada e, pelo fim da tarde, o seu braço enfiado no meu, cabelo branco ao vento, uma velha gabardina desabotoada, descíamos o Chiado a pé até ao Metro.
O Zé Gomes adorava ser reconhecido e cumprimentado nas ruas. Sorria à esquerda e à direita, alisava com a mão, vaidoso, a sua bonita cabeleira branca, enfiava o braço no meu e, muito direito, baixando levemente a cabeça, cumprimentava com elegância e educação todos os que o saudavam.
- Quem é esta? – perguntava-me em voz baixa – Você conhece?
- Ó Zé Gomes, sei lá! Não posso conhecer todas as pessoas que o cumprimentam...
- Então porque é que ela nos cumprimentou?
- Ora essa... porque conhece os seus livros, certamente, porque o viu na televisão...
Ele ficava vaidoso e embevecido. Via-se que sorria para dentro.
Embora procurasse gerir a situação com um certo distanciamento adorava este ritual de ser reconhecido e cumprimentado nas ruas. Sentia-se de facto como um poeta do povo. E gostava que “o povo” lhe reconhecesse isso.
- Há dias um pai atirou-me a criança para o colo e pediu-me para tirar uma fotografia com ela... Já pareço o Gomes Leal...
Eram os leitores anónimos, pessoas de todas as idades, homens ou mulheres, simples conhecidos de quem seria impossível recordar-se.
A sua poesia era cantada nas ruas e na rádio, nos comícios políticos, em espectáculos, a sua imagem aparecia frequentemente na televisão, nos jornais, em cartazes, todos o conheciam, todos sabiam de cor muitos dos seus poemas. Os seus livros, a ficção, as crónicas, a poesia, atingiam tiragens e vendas impensáveis. Estávamos na segunda metade da década de setenta. Todos sabiam quem era. Todos o respeitavam. Todos sabiam de cor os seus poemas.
Confesso que não voltei a encontrar até hoje, entre os muitos escritores com quem tenho trabalhado, um fenómeno de adesão popular tão impressionante. O Zé Gomes era um símbolo, o Presidente da Associação Portuguesa de Escritores, o poeta do povo, o “poeta militante”, como ele gostava de se chamar a si próprio.
Como pudemos esquecê-lo? Porque deixámos de o ler? – por que, para um escritor, ser esquecido é termos deixado de o ler. Mas a verdade é que fomos deixando de o ler. Lentamente, como o bicho corroendo a madeira, distraídos e desatentos, deixando que a poeira do tempo fosse pousando sobre a sua obra. “A borracha implacável do Grande Livro da Glória – há-de chegar um dia a minha vez, vai ver...” – costumava ele dizer.
Talvez alguns continuem a rever na televisão a Aldeia da Roupa Branca ignorando que é dele o texto do filme, que são dele as letras de muitas canções musicadas por Lopes Graça, as legendas de muito filmes da época em tradução assinada por Álvaro Gomes. Os seus livros. Sobretudo os seus livros, que hoje desapareceram das escolas (como aconteceu, aliás, com tanta outra literatura contemporânea), onde os jovens aprendiam a ler "As Aventuras de João Sem Medo" e a recitar e a interpretar os seus poemas.
Nascido em 1900, José Gomes Ferreira atravessou o século vinte como uma nuvem, como o zepelim prateado que começou a voar no dia em que ele abriu os olhos. “Sou do tamanho do século, assisti a tudo ou quase tudo...”. À morte do Rei, ao começo da Republica, duas guerras, à carnificina e à barbárie nazi, aos campos de concentração, à primeira e infame experiência atómica, ao inicio das ditaduras, ao silêncio que nos impuseram, às madrugadas de luz e ao anoitecer das esperanças.
Espanto-me – escreveu ele – do que afinal sempre espantou os poetas de todos os séculos. De haver ao mesmo tempo injustiças e estrelas...
Comemorou-se no ano 2000 o centenário do seu nascimento. Apesar dos esforços e do empenho dos seus filhos Raul José e Alexandre e de uns quantos amigos, a verdade é que tudo o que foi feito ficou aquém do que ele merecia, da ternura e do envolvimento popular visível nessas tardes em que descíamos o Chiado, juntos, de braço dado, até ao Metro.
Quando finalmente nos despedíamos, no Rossio, junto às escadas do Metro, havia ainda outra cena que se repetia.
- Onde terá posto a Rosalia a nota de 20 escudos que me deu antes de sair de casa?
e revolvia os bolsos, envergonhado, até a encontrar, dobrada em quatro, envelhecida, no bolso do casaco.
Zé Gomes não usava dinheiro, nem chaves, nem tabaco, suponho que nem relógio. Perderia tudo; ou não necessitava de nenhum desses objectos. Por isso Rosalia lhe entregava apenas aquela nota de 20 escudos cuidadosamente dobrada em quatro mas que ele tinha sempre dificuldade em encontrar. Dos seus bolsos, nesses momentos, saíam apenas poemas manuscritos, rabiscados e emendados nos mais inacreditáveis pedaços de papel.
Como quando me aparecia na editora para entregar as provas de um livro depois de revistas por si. Emendas sobre emendas, rasuras sobre rasuras, riscos a toda a largura da página, folhas rasgadas, palavras ininteligíveis.
- Ó Zé Gomes, como é que eu posso agora enviar isto para a Gráfica... – ralhava-lhe eu, tentando ser convencional.
- Você desculpe, mas eu fui revendo as provas enquanto passeava de eléctrico pela cidade... – dizia-me ele, baixando os olhos, como um menino apanhado numa falta grave –... e aquilo treme que se farta... Faça-me lá o favor de voltar a ver tudo outra vez com os seus olhos mágicos.
Para as gralhas, claro.
Quando faleceu, em Fevereiro de 1985 (vai fazer em breve 20 anos...), no dia em que, do outro lado da cidade, também faleceu o escritor Nuno Bragança, Lisboa colocou-se inteira aos seus pés.
Morreu o poeta...
Pela pequena sala da Casa da Imprensa, apesar da chuva que caía, passou inteira uma multidão. O Largo de Camões encheu como num dia de manifestação.
Como pudemos esquecê-lo assim, tão depressa?
Como permitimos que se esqueçam tão breve aqueles que afinal moldaram de sonhos a nossa vida?
Se eu pudesse iluminar por dentro as palavras de todos os dias (...)
terça-feira, julho 15, 2003
062 - O BLOGUE DE UM LIVREIRO
Bicho Escala Estantes é um blogue de um livreiro falando, como ele próprio diz, do "sacerdócio" da sua profissão.
Bem escrito (a provar que os livreiros não são todos iguais aos das Grandes Superfícies...), cheio de humor e ironia, pleno de conhecimento dos livros, com argutas observações sobre os frequentadores das livrarias, nomeadamente sobre os escritores que lá vão em busca dos seus próprios livros...
Bem vindo, companheiro. Talvez assim o livro ocupe na blogosfera o espaço que não tem no exterior. Nas nossas vidas.
Mas então - caramba! - a sua livraria não vende selos para o carro?!!
Bem escrito (a provar que os livreiros não são todos iguais aos das Grandes Superfícies...), cheio de humor e ironia, pleno de conhecimento dos livros, com argutas observações sobre os frequentadores das livrarias, nomeadamente sobre os escritores que lá vão em busca dos seus próprios livros...
Bem vindo, companheiro. Talvez assim o livro ocupe na blogosfera o espaço que não tem no exterior. Nas nossas vidas.
Mas então - caramba! - a sua livraria não vende selos para o carro?!!
061 - A EDIÇÃO, AINDA
O “nosso sociólogo” João L. Nogueira, do Socioblogue, continua a tentar ajudar-nos a decifrar algumas parcelas da realidade. Pena que, às vezes, de um modo demasiado especializado para o “meio”. Talvez com excessivo arsenal teórico. Mas compreende-se. Era Lacan que dizia: a ciência é árdua...
Desta vez (e fê-lo muito bem), decidiu comentar a actividade da edição.
Pessoalmente fico-lhe grato pela atenção – tão pouca é aquela que normalmente nos dedicam.
Nunca mais esqueci a definição de editor que um dia ouvi do meu colega Carlos Araújo (hoje Terramar), quando ainda trabalhava na Dom Quixote: o editor é um técnico altamente especializado em ideias gerais.
Concordo absolutamente que, na actualidade, “os constrangimentos próprios dos circuitos comerciais” (a distribuição, a comercialização, o marketing, a promoção, a publicidade, os efeitos dos novos media), transformando a “hegemonia de um mercado da oferta para um predomínio de um mercado da procura”, têm causado transformações não negligenciáveis “na actividade quotidiana de editores e escritores”.
Com tudo isto lá se vão as lições dos grandes editores do início do século XX, os Gallimard, os Feltrinelli, os Einaudi, os Siegfried Unseld, etc., para quem a construção e a coerência de um catálogo de autores era objectivo e projecto principal.
Depois deles vieram os chamados “grupos” editoriais com a frieza da sua lógica própria, absorveram quase todas essas editoras “independentes”, laboriosamente construídas por esses editores ao longo de muitos anos. É o tempo do que André Schiffrin chamou de “a edição sem editores”. Ou do “publica-se o que dá”, para poder publicar-se “o que não dá”, já referido pelo meu colega Manuel Alberto Valente.
Esta situação é particularmente séria em países como Portugal onde, para além de um universo de leitores muito reduzido, a evolução das taxas de leitura e de compra de livros continua a ser muito débil. Em países como a Espanha, a França, a Alemanha, a Itália, os livros “que não dão”, dão apesar de tudo um mínimo aceitável - o que permite um equilíbrio mais eficaz e a publicação de um menor número de livros de entretenimento. Em Portugal, não. O que “não dá”, não chega mesmo para coisa nenhuma, na maior parte dos casos. Há que recorrer mais frequentemente ao trash da industria editorial para se poder salvar a coerência e a qualidade de um catálogo.
Adicionalmente, diz ainda João Nogueira num mail que me enviou:
O Textos de Contracapa é, talvez, dos espaços mais «corajosos» no mundo dos blogues. Não deve ser fácil, cálculo, manter o sistema de comentários quando se é alvo de observações tão pouco construtivas e com intenções, no mínimo, nebulosas (já para não falar da linguagem assiduamente violenta, agressiva e ofensiva que parece caracterizar algumas dessas mensagens). Admiro-lhe o estoicismo e respeito-lhe a persistência.
Agradeço as suas palavras amáveis – esta parte da conversa também me interessa e tem uma explicação fácil, julgo eu, não encontro outras razões. Recebo mensalmente na editora uma média de 200 originais que me são propostos para edição. Como se imagina não posso publicar todos, mesmo que todos estivessem em condições de justificar publicação, o que na maior parte dos casos não acontece. Isso deixa, ao longo de muitos anos, um acumulado de mágoas, revoltas, frustrações, expectativas goradas, certamente também de algumas injustiças. Pago normalmente um elevado preço público por isso. Em Portugal, como dizia o meu autor António Lobo Antunes, todo o candidato a escritor se julga imediatamente como um automático candidato ao Nobel. Haverá certamente muito “ajuste de contas” no meio desses comentários. Para além de muita palermice juvenil, evidentemente, como lhe tenho chamado.
Mas há um reverso interessante em tudo isto, de que um dia tenciono falar: num país onde se lê pouco, porque razão existe tão grande número de candidatos a escritores? Num país onde lê pouco, porquê tantos desejam ser lidos? Num país onde se lê pouco, porquê tantos desejam envolver-se nessa enigmática actividade da escrita?
Será que escrevem mas não leem?
Continuaremos, de outra vez.
Desta vez (e fê-lo muito bem), decidiu comentar a actividade da edição.
Pessoalmente fico-lhe grato pela atenção – tão pouca é aquela que normalmente nos dedicam.
Nunca mais esqueci a definição de editor que um dia ouvi do meu colega Carlos Araújo (hoje Terramar), quando ainda trabalhava na Dom Quixote: o editor é um técnico altamente especializado em ideias gerais.
Concordo absolutamente que, na actualidade, “os constrangimentos próprios dos circuitos comerciais” (a distribuição, a comercialização, o marketing, a promoção, a publicidade, os efeitos dos novos media), transformando a “hegemonia de um mercado da oferta para um predomínio de um mercado da procura”, têm causado transformações não negligenciáveis “na actividade quotidiana de editores e escritores”.
Com tudo isto lá se vão as lições dos grandes editores do início do século XX, os Gallimard, os Feltrinelli, os Einaudi, os Siegfried Unseld, etc., para quem a construção e a coerência de um catálogo de autores era objectivo e projecto principal.
Depois deles vieram os chamados “grupos” editoriais com a frieza da sua lógica própria, absorveram quase todas essas editoras “independentes”, laboriosamente construídas por esses editores ao longo de muitos anos. É o tempo do que André Schiffrin chamou de “a edição sem editores”. Ou do “publica-se o que dá”, para poder publicar-se “o que não dá”, já referido pelo meu colega Manuel Alberto Valente.
Esta situação é particularmente séria em países como Portugal onde, para além de um universo de leitores muito reduzido, a evolução das taxas de leitura e de compra de livros continua a ser muito débil. Em países como a Espanha, a França, a Alemanha, a Itália, os livros “que não dão”, dão apesar de tudo um mínimo aceitável - o que permite um equilíbrio mais eficaz e a publicação de um menor número de livros de entretenimento. Em Portugal, não. O que “não dá”, não chega mesmo para coisa nenhuma, na maior parte dos casos. Há que recorrer mais frequentemente ao trash da industria editorial para se poder salvar a coerência e a qualidade de um catálogo.
Adicionalmente, diz ainda João Nogueira num mail que me enviou:
O Textos de Contracapa é, talvez, dos espaços mais «corajosos» no mundo dos blogues. Não deve ser fácil, cálculo, manter o sistema de comentários quando se é alvo de observações tão pouco construtivas e com intenções, no mínimo, nebulosas (já para não falar da linguagem assiduamente violenta, agressiva e ofensiva que parece caracterizar algumas dessas mensagens). Admiro-lhe o estoicismo e respeito-lhe a persistência.
Agradeço as suas palavras amáveis – esta parte da conversa também me interessa e tem uma explicação fácil, julgo eu, não encontro outras razões. Recebo mensalmente na editora uma média de 200 originais que me são propostos para edição. Como se imagina não posso publicar todos, mesmo que todos estivessem em condições de justificar publicação, o que na maior parte dos casos não acontece. Isso deixa, ao longo de muitos anos, um acumulado de mágoas, revoltas, frustrações, expectativas goradas, certamente também de algumas injustiças. Pago normalmente um elevado preço público por isso. Em Portugal, como dizia o meu autor António Lobo Antunes, todo o candidato a escritor se julga imediatamente como um automático candidato ao Nobel. Haverá certamente muito “ajuste de contas” no meio desses comentários. Para além de muita palermice juvenil, evidentemente, como lhe tenho chamado.
Mas há um reverso interessante em tudo isto, de que um dia tenciono falar: num país onde se lê pouco, porque razão existe tão grande número de candidatos a escritores? Num país onde lê pouco, porquê tantos desejam ser lidos? Num país onde se lê pouco, porquê tantos desejam envolver-se nessa enigmática actividade da escrita?
Será que escrevem mas não leem?
Continuaremos, de outra vez.
segunda-feira, julho 14, 2003
060 - OS AUTORES, SENHOR...
Olá, Francisco... com que então, os Autores, senhor, porque os fazeis sofrer assim ?!!
Não me diga que após o conhecido "choradinho" dos editores, teremos agora o choradinho dos autores... Sem razão, penso eu, no que se refere àqueles que têm um trabalho regular enquanto tal.
Cada vez maiores tiragens, cada vez maior número de leitores, cada vez mais livros vendidos, razoável acesso à promoção através dos media, uma industria editorial que se fortaleceu e modernizou e lhes presta hoje um serviço de razoável qualidade em todas as vertentes, cada vez maior descentralização de iniciativas culturais através do apoio das bibliotecas e municípios, cada vez maior interesse externo pelas suas obras promovido pelos editores e seus agentes, etc., etc.
Claro que há autores que terão razões de queixa dos seus editores. Não posso falar deles porque não conheço os problemas particulares de cada um. E há ainda a questão especifíca das "primeiras obras", que é um problema distinto.
Mas no resto, Francisco, porque nos lamentaremos assim ?
Só se for por causa do Ministro que nos coube (pessoa estimável, é certo) e da falta de acção do Estado nesta área, ignorando a parcela de trabalho que lhe cabe.
Não me diga que após o conhecido "choradinho" dos editores, teremos agora o choradinho dos autores... Sem razão, penso eu, no que se refere àqueles que têm um trabalho regular enquanto tal.
Cada vez maiores tiragens, cada vez maior número de leitores, cada vez mais livros vendidos, razoável acesso à promoção através dos media, uma industria editorial que se fortaleceu e modernizou e lhes presta hoje um serviço de razoável qualidade em todas as vertentes, cada vez maior descentralização de iniciativas culturais através do apoio das bibliotecas e municípios, cada vez maior interesse externo pelas suas obras promovido pelos editores e seus agentes, etc., etc.
Claro que há autores que terão razões de queixa dos seus editores. Não posso falar deles porque não conheço os problemas particulares de cada um. E há ainda a questão especifíca das "primeiras obras", que é um problema distinto.
Mas no resto, Francisco, porque nos lamentaremos assim ?
Só se for por causa do Ministro que nos coube (pessoa estimável, é certo) e da falta de acção do Estado nesta área, ignorando a parcela de trabalho que lhe cabe.
059 - OS BLOGUES E A GUERRA DO IRAQUE
Salam Pax é o pseudónimo de um jovem iraquiano de 29 anos, de ascendência judia, que escreveu um blogue (antes, durante, após) sobre a guerra no Iraque.
Os seus posts foram sendo publicados pelo The Guardian sob o título The Baghdad Blog.
Este blogue vai agora ser publicado em livro (a 3 de Setembro próximo) por Atlantic Books (UK), já com uma enorme corrida internacional aos respectivos direitos: Itália, Dinamarca, Bélgica, Austrália, USA, Alemanha, França, que o consideram o "Diário de Anne Frank" da era moderna. William Gibson vai ao ponto de considerar este jovem bloguista como um "talentoso escritor". Foi detectada pelo Google a existência noutros websites de mais de 30.000 links para discussão deste blogue.
Mais uma manifestação importante deste movimento.
Os seus posts foram sendo publicados pelo The Guardian sob o título The Baghdad Blog.
Este blogue vai agora ser publicado em livro (a 3 de Setembro próximo) por Atlantic Books (UK), já com uma enorme corrida internacional aos respectivos direitos: Itália, Dinamarca, Bélgica, Austrália, USA, Alemanha, França, que o consideram o "Diário de Anne Frank" da era moderna. William Gibson vai ao ponto de considerar este jovem bloguista como um "talentoso escritor". Foi detectada pelo Google a existência noutros websites de mais de 30.000 links para discussão deste blogue.
Mais uma manifestação importante deste movimento.
sexta-feira, julho 11, 2003
058 - FEIRA DO LIVRO, AINDA
A Senhora Vereadora da Cultura da CML, em artigo publicado no Público de 09.07, diz que afinal estava tudo bem na Feira do Livro deste ano. "A Feira a quem a Visita", ironiza simpaticamente, a propósito do título do meu texto, publicado no DNA de 21.06: "A Feira a Quem a Trabalha...", aqui arquivado no post 030.
Costuma dizer-se que "não há pior cego do que aquele que não quer ver..."
Costuma dizer-se que "não há pior cego do que aquele que não quer ver..."
058 - OS "CADERNOS", DE CAMUS
Aquilo que chamei anteriormente de "gaguez mental e sintáctica" continua, infelizmente, a proliferar ao abrigo do anonimato. Por mail, nos comentários, espalhada por alguns dos blogues, etc. Parece que não há remédio. Por mim não lhe dou seguimento. Tomara arranjar tempo para manter por aqui alguma conversa interessante, quanto mais ter ainda que responder a palermices e vulgaridades. Com erros de ortografia e sintaxe, ainda por cima. Ao menos podiam aprender a usar um mero dicionário...
Li os três volumes dos "Cadernos" de Camus, tal como Pacheco Pereira, aí pelos inícios dos anos 60, também na célebre colecção Miniatura da editora Livros do Brasil. Cheguei a imitá-lo, tão forte foi a impressão que me causaram. Tenho, dessa época, umas pequenas agendas de bolso onde ia fazendo o mesmo, anotando a vida e as ideias. Sorrio, hoje, quando me atrevo a relê-las. Pela ingenuidade das ideias, por um certo pretenciosismo da escrita, às vezes pela premonição de alguns apontamentos.
Mas os "Cadernos", de Camus, os originais, perdi-os nas voltas que a vida dá. Ficaram-me pelo caminho no meio de alguma mudança de casa, tê-los-ei emprestado e não mos devolveram, ou algo similar.
Pacheco Pereira fala-me agora da sua reedição. É uma boa sugestão. Vou ver como estão os direitos, digo-o aqui em público apesar de haver outros editores bloguistas. Mas não tem importância. Há certos livros que não é relevante quem os publica; o importante é que estejam disponíveis para ser lidos.
A Dom Quixote (anuncio) vai aliás recuperar em breve uma outra velha ideia, que marcou claramente o seu passado, no final dos anos 60: a dos "Cadernos Dom Quixote". Provavelmente sairão ainda este ano. Com nova forma e novos objectivos, evidentemente. Textos de jornalismo de investigação, escritos por jornalistas, com o espaço que hoje os jornais e as revistas não consentem aos seus trabalhos, sobre alguns temas quentes que atravessam a sociedade portuguesa actual. Os três primeiros, se tudo correr bem, surgirão lá para o início de Outubro. Os temas e os autores são, por enquanto, surpresa. E os próximos já estão a ser escritos, também, neste momento. É um projecto que estou a acarinhar com bastante entusiasmo, "compensador" da situação em que se encontra a imprensa escrita actualmente, sem espaços nem vontade para "ir mais longe". Chama-se "Cadernos Dom Quixote de Reportagem". Com três vertentes: as reportagens portuguesas de actualidade; algumas reportagens de jornalistas estrangeiros sobre temas internacionais; uma área antológica de grandes reportagens que ficaram "perdidas no passado". Vamos ver se conseguimos interessar os leitores. E os divulgadores, é claro, que os livros não se fazem sem isso, e "isso" é o que menos existe na nossa comunicação social.
Obrigado Pacheco Pereira pela sugestão do Camus. Já agora, quem não leu, aproveite para ler "O Estrangeiro" recentemente relançado com o jornal Público. Ia a dizer: passe a publicidade. Mas recomendar um bom livro, um bom disco, um bom filme, um bom espectáculo, nunca é apenas publicidade. É informação. Entendam isto, de uma vez, amigos jornalistas de secretária.
Li os três volumes dos "Cadernos" de Camus, tal como Pacheco Pereira, aí pelos inícios dos anos 60, também na célebre colecção Miniatura da editora Livros do Brasil. Cheguei a imitá-lo, tão forte foi a impressão que me causaram. Tenho, dessa época, umas pequenas agendas de bolso onde ia fazendo o mesmo, anotando a vida e as ideias. Sorrio, hoje, quando me atrevo a relê-las. Pela ingenuidade das ideias, por um certo pretenciosismo da escrita, às vezes pela premonição de alguns apontamentos.
Mas os "Cadernos", de Camus, os originais, perdi-os nas voltas que a vida dá. Ficaram-me pelo caminho no meio de alguma mudança de casa, tê-los-ei emprestado e não mos devolveram, ou algo similar.
Pacheco Pereira fala-me agora da sua reedição. É uma boa sugestão. Vou ver como estão os direitos, digo-o aqui em público apesar de haver outros editores bloguistas. Mas não tem importância. Há certos livros que não é relevante quem os publica; o importante é que estejam disponíveis para ser lidos.
A Dom Quixote (anuncio) vai aliás recuperar em breve uma outra velha ideia, que marcou claramente o seu passado, no final dos anos 60: a dos "Cadernos Dom Quixote". Provavelmente sairão ainda este ano. Com nova forma e novos objectivos, evidentemente. Textos de jornalismo de investigação, escritos por jornalistas, com o espaço que hoje os jornais e as revistas não consentem aos seus trabalhos, sobre alguns temas quentes que atravessam a sociedade portuguesa actual. Os três primeiros, se tudo correr bem, surgirão lá para o início de Outubro. Os temas e os autores são, por enquanto, surpresa. E os próximos já estão a ser escritos, também, neste momento. É um projecto que estou a acarinhar com bastante entusiasmo, "compensador" da situação em que se encontra a imprensa escrita actualmente, sem espaços nem vontade para "ir mais longe". Chama-se "Cadernos Dom Quixote de Reportagem". Com três vertentes: as reportagens portuguesas de actualidade; algumas reportagens de jornalistas estrangeiros sobre temas internacionais; uma área antológica de grandes reportagens que ficaram "perdidas no passado". Vamos ver se conseguimos interessar os leitores. E os divulgadores, é claro, que os livros não se fazem sem isso, e "isso" é o que menos existe na nossa comunicação social.
Obrigado Pacheco Pereira pela sugestão do Camus. Já agora, quem não leu, aproveite para ler "O Estrangeiro" recentemente relançado com o jornal Público. Ia a dizer: passe a publicidade. Mas recomendar um bom livro, um bom disco, um bom filme, um bom espectáculo, nunca é apenas publicidade. É informação. Entendam isto, de uma vez, amigos jornalistas de secretária.
quarta-feira, julho 09, 2003
057 - RUY, DAVID
(...)
A minha vida é hoje um sítio de silêncio
a própria dor se estreme é dor emudecida
que não me traga cá notícias nenhum núncio
porque o silêncio é o sinónimo da vida
(...)
versos do Ruy que hoje me assaltaram a memória, sabe-se lá porquê.
Como também:
(...)
Eu vinha para a vida e dão-me dias
Reduzida ao relógio a aventura
(...)
ou David:
Agarro agora a vida pelos ombros
Ó tempo em que a prendi pela cintura
A minha vida é hoje um sítio de silêncio
a própria dor se estreme é dor emudecida
que não me traga cá notícias nenhum núncio
porque o silêncio é o sinónimo da vida
(...)
versos do Ruy que hoje me assaltaram a memória, sabe-se lá porquê.
Como também:
(...)
Eu vinha para a vida e dão-me dias
Reduzida ao relógio a aventura
(...)
ou David:
Agarro agora a vida pelos ombros
Ó tempo em que a prendi pela cintura
segunda-feira, julho 07, 2003
056 - A LITERATURA E O ENSINO DA LÍNGUA
Aqui fica mais um texto arquivado.
Publicado no DNA de 05.07.2003
Aqui fica mais um texto arquivado.
Publicado no DNA de 05.07.2003
“Nela (na literatura) se jogam trabalho e não trabalho, jogo e artesania, mas também conhecimento, modulações dos afectos e aquela aprendizagem ética que nenhum decálogo e nenhuma catequese nos podem proporcionar”
Manuel Gusmão
Quando alguém procura uma dessas escolas de aprendizagem rápida do francês, inglês ou alemão, pode dizer-se que pretende sobretudo aceder a uma utilização instrumental dessas línguas. Para efeitos de negócios, de trabalho, de viagens, ou para mera comunicação elementar.
Trata-se de uma das mais simples funções da linguagem: a estrita comunicação veicular. As palavras ligam-se às coisas e às situações e permitem-nos falar delas tal e qual são, como seus meros referentes. A Lua é apenas o satélite da terra; o Sol, uma simples estrela.
Ninguém pensaria, porém, enviar um filho para uma dessas escolas para aí aprender, do mesmo modo, a língua materna.
Isto porque a linguagem tem outras funções (nomeadamente aquela que alguns linguistas designam ainda como a função poética) e que evidentemente não é possível colocar em evidência fora do campo onde predominantemente se utiliza: a literatura – onde o tal satélite da terra poderá denominar-se, por exemplo, como aquela “foice de prata”, ou o sol por “astro-rei”.
Dizia o linguista Èmile Benveniste que sem a aquisição da linguagem não é possível falar em pensamento. Que não é possível pensar sem ter por base o domínio de uma língua. A aquisição da linguagem pelas crianças está aliás intimamente ligada à consciência do mundo que as rodeia. Inicialmente as crianças aprendem a relacionar as palavras e as coisas, enquanto meros referentes umas das outras, só depois acedem, lentamente, à faculdade de simbolizar. É esta faculdade que lhes permite distanciar a palavra do objecto de que ela é o referente, formulando um conceito distinto e de mais larga significação. É este poder da linguagem que instaura a realidade imaginária, faz das coisas outras coisas, mostra o que não é visível, diz o que não está dito, possibilita o que não é possível, cria o que não existe, modula ou amplia os sentimentos e as emoções.
Vem tudo isto a propósito da recente discussão acerca das propostas de alterações introduzidas nos programas do ensino secundário e da progressiva e dramática secundarização do ensino da literatura no âmbito mais geral do ensino da língua.
Questão que tem motivado algumas polémicas apaixonadas mas de escasso rigor científico, sobretudo quando questionaram a diminuição do estudo de alguns textos fundadores da nossa literatura, como é o caso, por exemplo, de Os Lusíadas. Mas que felizmente motivaram dois textos que julgo importantes de António Guerreiro e Manuel Gusmão, publicados na revista ACTUAL, do Expresso de 1 de Março passado, chamando a atenção para o risco que representa o facto de a literatura “ocupar um lugar cada vez mais residual nos programas do Secundário”. Na teoria, como na prática; dadas as queixas dos professores sobre a impossibilidade de “dar a ler convenientemente” o que se encontra prescrito.
A tese dos programadores destas alterações é que o ensino se deve aproximar cada vez mais da preparação do estudante para o mundo do trabalho (o chamado mundo das realidades), libertando-o das disciplinas que representam o que aparentemente é inútil (as disciplinas de humanidades) e, portanto, pode e deve ser suprimido sem perdas imediatas. Os perigos são evidentes, e cito Jacques Derrida através do texto já referido de António Guerreiro: “simplificação acelerada, manipulação, homogeneização, submissão da investigação a cálculos de rentabilidade imediata, marketing intelectual, destruição da cultura literária”.
Em Portugal, como as coisas ainda hoje continuam a chegar com muito atraso, está agora a tentar implantar-se uma tendência que em muitos outros países, como a França, a Itália, a Alemanha, se detectou há muito que deve ser corrigida. Tendência essa que, como refere Manuel Gusmão, parte do principio redutor e obsceno de que o ensino da literatura “só atrapalha o ensino da língua”.
Ora, ao contrário, é o ensino da língua materna, se desligado desse modo de usar a língua que representa a experiência literária, dos próprios usos e costumes de uma língua que nela vai retendo a experiência e a história de um povo, que sairá enormemente empobrecido.
Em toda a Europa (pelo menos) cada vez mais se caminha para que o ensino da literatura (e da história da literatura enquanto parte da história das ideias) se relacione de perto com o ensino da língua. Isto porque a faculdade de simbolizar se encontra na origem de todo o pensamento, da faculdade de conceptualizar. O pensamento, também referia Benveniste, não é outra coisa que o poder de construir representações e de operar sobre elas.
Atrasar esta faculdade para um grau de ensino superior ao Secundário, privar o estudante da aquisição de um pensamento crítico, do desenvolvimento das suas capacidades criadoras é, como bem refere Manuel Gusmão, limitar “de forma injusta as possibilidades de encontro com a literatura, por parte daqueles que provavelmente só na escola a poderão encontrar”.
Esperemos que alguém no Ministério da Educação esteja em condições de reflectir sobre isto. Submersos pelo linguarejar simplificado das mensagens telefónicas escritas, dos computadores, dos jogos electrónicos, da locução nas rádios e nas televisões, da escrita apressada dos jornais e revistas de socialites, dos discursos dos políticos sem cultura literária, da má literatura, estaremos certamente a criar uma geração ainda mais tatibitate que aquela com a qual hoje convivemos.
Manuel Gusmão
Quando alguém procura uma dessas escolas de aprendizagem rápida do francês, inglês ou alemão, pode dizer-se que pretende sobretudo aceder a uma utilização instrumental dessas línguas. Para efeitos de negócios, de trabalho, de viagens, ou para mera comunicação elementar.
Trata-se de uma das mais simples funções da linguagem: a estrita comunicação veicular. As palavras ligam-se às coisas e às situações e permitem-nos falar delas tal e qual são, como seus meros referentes. A Lua é apenas o satélite da terra; o Sol, uma simples estrela.
Ninguém pensaria, porém, enviar um filho para uma dessas escolas para aí aprender, do mesmo modo, a língua materna.
Isto porque a linguagem tem outras funções (nomeadamente aquela que alguns linguistas designam ainda como a função poética) e que evidentemente não é possível colocar em evidência fora do campo onde predominantemente se utiliza: a literatura – onde o tal satélite da terra poderá denominar-se, por exemplo, como aquela “foice de prata”, ou o sol por “astro-rei”.
Dizia o linguista Èmile Benveniste que sem a aquisição da linguagem não é possível falar em pensamento. Que não é possível pensar sem ter por base o domínio de uma língua. A aquisição da linguagem pelas crianças está aliás intimamente ligada à consciência do mundo que as rodeia. Inicialmente as crianças aprendem a relacionar as palavras e as coisas, enquanto meros referentes umas das outras, só depois acedem, lentamente, à faculdade de simbolizar. É esta faculdade que lhes permite distanciar a palavra do objecto de que ela é o referente, formulando um conceito distinto e de mais larga significação. É este poder da linguagem que instaura a realidade imaginária, faz das coisas outras coisas, mostra o que não é visível, diz o que não está dito, possibilita o que não é possível, cria o que não existe, modula ou amplia os sentimentos e as emoções.
Vem tudo isto a propósito da recente discussão acerca das propostas de alterações introduzidas nos programas do ensino secundário e da progressiva e dramática secundarização do ensino da literatura no âmbito mais geral do ensino da língua.
Questão que tem motivado algumas polémicas apaixonadas mas de escasso rigor científico, sobretudo quando questionaram a diminuição do estudo de alguns textos fundadores da nossa literatura, como é o caso, por exemplo, de Os Lusíadas. Mas que felizmente motivaram dois textos que julgo importantes de António Guerreiro e Manuel Gusmão, publicados na revista ACTUAL, do Expresso de 1 de Março passado, chamando a atenção para o risco que representa o facto de a literatura “ocupar um lugar cada vez mais residual nos programas do Secundário”. Na teoria, como na prática; dadas as queixas dos professores sobre a impossibilidade de “dar a ler convenientemente” o que se encontra prescrito.
A tese dos programadores destas alterações é que o ensino se deve aproximar cada vez mais da preparação do estudante para o mundo do trabalho (o chamado mundo das realidades), libertando-o das disciplinas que representam o que aparentemente é inútil (as disciplinas de humanidades) e, portanto, pode e deve ser suprimido sem perdas imediatas. Os perigos são evidentes, e cito Jacques Derrida através do texto já referido de António Guerreiro: “simplificação acelerada, manipulação, homogeneização, submissão da investigação a cálculos de rentabilidade imediata, marketing intelectual, destruição da cultura literária”.
Em Portugal, como as coisas ainda hoje continuam a chegar com muito atraso, está agora a tentar implantar-se uma tendência que em muitos outros países, como a França, a Itália, a Alemanha, se detectou há muito que deve ser corrigida. Tendência essa que, como refere Manuel Gusmão, parte do principio redutor e obsceno de que o ensino da literatura “só atrapalha o ensino da língua”.
Ora, ao contrário, é o ensino da língua materna, se desligado desse modo de usar a língua que representa a experiência literária, dos próprios usos e costumes de uma língua que nela vai retendo a experiência e a história de um povo, que sairá enormemente empobrecido.
Em toda a Europa (pelo menos) cada vez mais se caminha para que o ensino da literatura (e da história da literatura enquanto parte da história das ideias) se relacione de perto com o ensino da língua. Isto porque a faculdade de simbolizar se encontra na origem de todo o pensamento, da faculdade de conceptualizar. O pensamento, também referia Benveniste, não é outra coisa que o poder de construir representações e de operar sobre elas.
Atrasar esta faculdade para um grau de ensino superior ao Secundário, privar o estudante da aquisição de um pensamento crítico, do desenvolvimento das suas capacidades criadoras é, como bem refere Manuel Gusmão, limitar “de forma injusta as possibilidades de encontro com a literatura, por parte daqueles que provavelmente só na escola a poderão encontrar”.
Esperemos que alguém no Ministério da Educação esteja em condições de reflectir sobre isto. Submersos pelo linguarejar simplificado das mensagens telefónicas escritas, dos computadores, dos jogos electrónicos, da locução nas rádios e nas televisões, da escrita apressada dos jornais e revistas de socialites, dos discursos dos políticos sem cultura literária, da má literatura, estaremos certamente a criar uma geração ainda mais tatibitate que aquela com a qual hoje convivemos.
sábado, julho 05, 2003
055 - A INDUSTRIA EDITORIAL, HOJE
Há coisas que nos custam dizer em voz alta; mas há coisas que teremos de ter a coragem de começar a dizer em voz alta.
Fez bem o editor Manuel Alberto Valente ao colocar este post no seu blogue:
PEQUENA REFLEXÃO SOBRE A EDIÇÃO
Publicam-se muitos livros. Publicam-se mesmo demasiados livros. Mas quantos desses livros não passam de espuma que o vento levará? Todos temos consciência disso. Mas são as regras da indústria editorial.
Vão longe os tempos em que um editor publicava apenas os livros de que gostava. Já ninguém o faz, mesmo aqueles que, para auto-promoção, dizem fazê-lo. Publica-se o que dá para poder publicar-se o que não dá. É bom que se perceba esta dinâmica. Muitos livros "minoritários" ficariam sem editor se não fosse a existência dos best-sellers que os sustentam.
É verdade. Sendo a industria editorial uma actividade eminentemente privada, não há outra solução. Sobretudo enquanto o Estado não se preocupar com a correcção dos actuais indíces de leitura, como os recentemente publicados, sem qualquer alteração significativa relativamente aos de anos anteriores.
É verdade. Muitos livros e autores importantes ficariam por publicar se não fosse a ajuda dos chamados "best-sellers", ou "livros mediáticos" como lhes chamamos hoje. Para além do mais eles representam "leituras" (novas pessoas conquistadas para a leitura), um modo de enfrentar outras formas de ocupação do tempo. E sem leituras não nascem leitores (pessoas que crescem, evoluem, aprendem a seleccionar, aperfeiçoam o sentido crítico, que irão gradualmente procurando outro tipo de livros).
Fez bem o editor Manuel Alberto Valente ao colocar este post no seu blogue:
PEQUENA REFLEXÃO SOBRE A EDIÇÃO
Publicam-se muitos livros. Publicam-se mesmo demasiados livros. Mas quantos desses livros não passam de espuma que o vento levará? Todos temos consciência disso. Mas são as regras da indústria editorial.
Vão longe os tempos em que um editor publicava apenas os livros de que gostava. Já ninguém o faz, mesmo aqueles que, para auto-promoção, dizem fazê-lo. Publica-se o que dá para poder publicar-se o que não dá. É bom que se perceba esta dinâmica. Muitos livros "minoritários" ficariam sem editor se não fosse a existência dos best-sellers que os sustentam.
É verdade. Sendo a industria editorial uma actividade eminentemente privada, não há outra solução. Sobretudo enquanto o Estado não se preocupar com a correcção dos actuais indíces de leitura, como os recentemente publicados, sem qualquer alteração significativa relativamente aos de anos anteriores.
É verdade. Muitos livros e autores importantes ficariam por publicar se não fosse a ajuda dos chamados "best-sellers", ou "livros mediáticos" como lhes chamamos hoje. Para além do mais eles representam "leituras" (novas pessoas conquistadas para a leitura), um modo de enfrentar outras formas de ocupação do tempo. E sem leituras não nascem leitores (pessoas que crescem, evoluem, aprendem a seleccionar, aperfeiçoam o sentido crítico, que irão gradualmente procurando outro tipo de livros).
054 - AUGUSTO ABELAIRA
No meio da voragem dos temas políticos, das discussões do nosso dia a dia, das guerras e guerrinhas, dos Lellos e dos Portas, não posso deixar de registar aqui o falecimento do escritor Augusto Abelaira.
Ao menos para que nos reconciliemos com nós próprios, para que se sinta por uma vez o que de facto é importante nas nossas vidas.
O Augusto escreveu romances belíssimos como "A Cidade das Flores" (1959), "Os Desertores" (1960), "A Palavra é de Oiro" (1961), "As Boas Intenções" (1963), "Enseada Amena" (1966), "O Único Animal Que" (1985), criou personagens femininos inexquecíveis como Rosa Bianca ou Maria Brenda (serei eu uma flor de papel?), as suas crónicas na imprensa, durante muitos anos, foram imperdíveis.
Fui procurar e folhear de novo os seus livros. Aos jovens que o não leram recomendaria evidentemente, ainda hoje, "A Cidade das Flores".
Convivemos de perto durante muitos anos, embora nunca tivesse sido seu editor: nas conversas de fim de tarde no Café Monte Carlo - no tempo em que havia cafés e se conversava - com José Gomes Ferreira, Carlos de Oliveira, Herberto Helder, José Cardoso Pires; após o 25 de Abril nas reuniões semanais da direcção da Associação Portuguesa de Escritores. Foi o Augusto que recomendou ao António Ramos, da Bertrand, o meu segundo romance, nessa altura fazia-se assim, a recomendação era dos mais velhos.
Que a sua memória perdure, que os seus livros continuem a ser lidos. Porque afinal são eles, os livros, a música que o Augusto tanto apreciava, que nos salvam deste mundo pobre que nos sobrou para viver.
O tal dos Lellos e dos Portas, e de tantos outros.
Ao menos para que nos reconciliemos com nós próprios, para que se sinta por uma vez o que de facto é importante nas nossas vidas.
O Augusto escreveu romances belíssimos como "A Cidade das Flores" (1959), "Os Desertores" (1960), "A Palavra é de Oiro" (1961), "As Boas Intenções" (1963), "Enseada Amena" (1966), "O Único Animal Que" (1985), criou personagens femininos inexquecíveis como Rosa Bianca ou Maria Brenda (serei eu uma flor de papel?), as suas crónicas na imprensa, durante muitos anos, foram imperdíveis.
Fui procurar e folhear de novo os seus livros. Aos jovens que o não leram recomendaria evidentemente, ainda hoje, "A Cidade das Flores".
Convivemos de perto durante muitos anos, embora nunca tivesse sido seu editor: nas conversas de fim de tarde no Café Monte Carlo - no tempo em que havia cafés e se conversava - com José Gomes Ferreira, Carlos de Oliveira, Herberto Helder, José Cardoso Pires; após o 25 de Abril nas reuniões semanais da direcção da Associação Portuguesa de Escritores. Foi o Augusto que recomendou ao António Ramos, da Bertrand, o meu segundo romance, nessa altura fazia-se assim, a recomendação era dos mais velhos.
Que a sua memória perdure, que os seus livros continuem a ser lidos. Porque afinal são eles, os livros, a música que o Augusto tanto apreciava, que nos salvam deste mundo pobre que nos sobrou para viver.
O tal dos Lellos e dos Portas, e de tantos outros.
sexta-feira, julho 04, 2003
053 - PEDRO J. GUTIÉRREZ
Passei esta semana com o escritor cubano Pedro J. Gutiérrez.
Pedro Juan veio à Europa para o lançamento do seu livro “Animal Tropical”, depois de “Trilogia Suja de Havana” e “O Rei de Havana”. Foi ainda ao Brasil e a outros países.
Tinha saído de Cuba no início de Março, antes dos acontecimentos mais recentes.
Regressa hoje a casa.
Sem saber muito bem o que o pode esperar...
Jantámos juntos na Quarta-feira, com a sua Agente Anne-Marie Vallat.
Cansado, Pedro queixava-se que o seu trabalho literário havia ficado um pouco esquecido em muitas das perguntas dos jornalistas. Tentei explicar-lhe que era natural, nas actuais circunstâncias.
Pedro Juan veio à Europa para o lançamento do seu livro “Animal Tropical”, depois de “Trilogia Suja de Havana” e “O Rei de Havana”. Foi ainda ao Brasil e a outros países.
Tinha saído de Cuba no início de Março, antes dos acontecimentos mais recentes.
Regressa hoje a casa.
Sem saber muito bem o que o pode esperar...
Jantámos juntos na Quarta-feira, com a sua Agente Anne-Marie Vallat.
Cansado, Pedro queixava-se que o seu trabalho literário havia ficado um pouco esquecido em muitas das perguntas dos jornalistas. Tentei explicar-lhe que era natural, nas actuais circunstâncias.
quinta-feira, julho 03, 2003
052 - TRADUÇÕES DEFEITUOSAS
Pede-me o blogue Salmoura que lhe diga como se deve proceder quando um leitor adquire um livro com uma má tradução.
E refere um caso concreto, dando exemplos.
Infelizmente, todos nós, editores, temos situações desse tipo, por maior cuidado que se procure ter.
Infelizmente, também, mesmo os mais conceituados tradutores fazem às vezes traduções deficientes.
No exemplo que me dá, trata-se de um tradutor conceituadíssimo, várias vezes premiado. De modo algum um “desconhecido”, como refere. Trabalhou já com a DQ na tradução de dificílimos escritores italianos (Primo Levi, Leonardo Sciascia, António Tabucchi, que também sabe bom português, etc.). Ultimamente tem trabalhado com os meus colegas da Editorial Teorema, traduzindo, por exemplo, todo o Calvino, algum Borges, etc.
Recomendo-lhe pois que dirija ao editor os seus comentários e reclamações e oiça as suas explicações.
O leitor tem sempre o direito legitimo de reclamar de um “objecto com defeitos” e solicitar a sua troca ou a devolução do valor pago, desde que justifique a existência de tais defeitos.
Alguns dos exemplos por si referidos podem também resultar da forma de escrita e intenção do próprio autor original, o que muitas vezes acontece. A liberdade do tradutor também tem os seus limites.
E refere um caso concreto, dando exemplos.
Infelizmente, todos nós, editores, temos situações desse tipo, por maior cuidado que se procure ter.
Infelizmente, também, mesmo os mais conceituados tradutores fazem às vezes traduções deficientes.
No exemplo que me dá, trata-se de um tradutor conceituadíssimo, várias vezes premiado. De modo algum um “desconhecido”, como refere. Trabalhou já com a DQ na tradução de dificílimos escritores italianos (Primo Levi, Leonardo Sciascia, António Tabucchi, que também sabe bom português, etc.). Ultimamente tem trabalhado com os meus colegas da Editorial Teorema, traduzindo, por exemplo, todo o Calvino, algum Borges, etc.
Recomendo-lhe pois que dirija ao editor os seus comentários e reclamações e oiça as suas explicações.
O leitor tem sempre o direito legitimo de reclamar de um “objecto com defeitos” e solicitar a sua troca ou a devolução do valor pago, desde que justifique a existência de tais defeitos.
Alguns dos exemplos por si referidos podem também resultar da forma de escrita e intenção do próprio autor original, o que muitas vezes acontece. A liberdade do tradutor também tem os seus limites.
051 - OS NOVOS EMIGRANTES, 3
Regresso então a este tema.
Os dados seguintes estão contidos num estudo intitulado “Os Movimentos Migratórios Externos e a sua Incidência no Mercado de Trabalho em Portugal”, de que é co-autora a socióloga Maria Ioannis Baganha, professora da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, e foram reproduzidos no DN de 26.06.2003.
1. Cinco milhões de portugueses vivem actualmente fora do país, o que é um número deveras impressionante se comparado com o total da nossa população;
2. 31% estão na Europa (França, Reino Unido, Suíça, Alemanha, Espanha, Luxemburgo) os restantes noutros continentes;
3. Cem mil portugueses atravessam a fronteira anualmente em busca de trabalho no exterior;
4. O saldo entre as saídas e os regressos é mais ou menos equilibrado;
5. Apesar desse equilíbrio, nos últimos 10 anos, o número de saídas consistentes é de cerca de 300 mil;
6. Anteriormente, as regiões do norte do país contribuíam com o maior número de emigrantes. Actualmente tem-se destacado a subida da região de Lisboa e Vale do Tejo;
7. Portugal é o país europeu com a maior taxa de emigração;
8. A melhoria das habilitações literárias (sobretudo os recém-licenciados) distingue os actuais emigrantes das anteriores gerações. Cerca de 80% dos nossos emigrantes actuais têm o ensino básico e 11,3% o ensino secundário ou superior (INE);
9. Em confronto com este número de saídas, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras indica que, para além dos legais, Portugal tem neste momento cerca de meio milhão de imigrantes ilegais;
10. Dada a situação económica do país todas estas tendências tenderão a agravar-se nos próximos anos;
11. Em 2002 houve já um aumento das saídas de 32,9%, representando mais de 27 mil novos emigrantes, com especial incidência nas mulheres (INE) ;
12. Conclusão da CGTP (Carlos Trindade): exportamos hoje mão de obra qualificada em busca de emprego e de melhores salários, recebemos mão de obra barata, desprotegida e sem regalias sociais, em benefício claro dos empregadores;
13. A Assembleia da República recebeu, entre 26 e 28.06., os 97 conselheiros do Plenário do Conselho das Comunidades Portuguesas (o tal onde esteve presente aquele senhor ex-agente da PIDE que foi (ou esteve para ser, ou chegou a ser e depois não foi) condecorado pelo Presidente da Republica. O objectivo desta reunião seria discutir o apoio consular aos nossos emigrantes, o ensino da língua portuguesa, etc. Desconhecem-se ainda conclusões;
Eu não sou especialista destas matérias. Deixo aqui apenas os números recolhidos, que dão muito que pensar. Não posso deixar de considerar acertado o comentário transcrito da CGTP.
O Presidente da República (e o próprio Primeiro-Ministro) têm tentado promover a reflexão sobre estes temas. Refiro-me concretamente ao grupo de trabalho dinamizado pela Profª. Maria João Rodrigues (actual Presidente do Conselho da Comissão Europeia para as Ciências Sociais), trabalhando sobre temas como os da criatividade, inovação, produtividade e competitividade.
Aos interessados, não posso deixar de indicar a leitura do livro “Para Uma Política de Inovação em Portugal” (2003), publicado pela DQ (perdoem a publicidade justificada).
Mas deixo o que me parece ser uma terrível interrogação: para quem estamos de facto a formar os nossos trabalhadores e os nossos jovens licenciados? Quando é que estas políticas se orientarão também para os empregadores?
Os dados seguintes estão contidos num estudo intitulado “Os Movimentos Migratórios Externos e a sua Incidência no Mercado de Trabalho em Portugal”, de que é co-autora a socióloga Maria Ioannis Baganha, professora da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, e foram reproduzidos no DN de 26.06.2003.
1. Cinco milhões de portugueses vivem actualmente fora do país, o que é um número deveras impressionante se comparado com o total da nossa população;
2. 31% estão na Europa (França, Reino Unido, Suíça, Alemanha, Espanha, Luxemburgo) os restantes noutros continentes;
3. Cem mil portugueses atravessam a fronteira anualmente em busca de trabalho no exterior;
4. O saldo entre as saídas e os regressos é mais ou menos equilibrado;
5. Apesar desse equilíbrio, nos últimos 10 anos, o número de saídas consistentes é de cerca de 300 mil;
6. Anteriormente, as regiões do norte do país contribuíam com o maior número de emigrantes. Actualmente tem-se destacado a subida da região de Lisboa e Vale do Tejo;
7. Portugal é o país europeu com a maior taxa de emigração;
8. A melhoria das habilitações literárias (sobretudo os recém-licenciados) distingue os actuais emigrantes das anteriores gerações. Cerca de 80% dos nossos emigrantes actuais têm o ensino básico e 11,3% o ensino secundário ou superior (INE);
9. Em confronto com este número de saídas, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras indica que, para além dos legais, Portugal tem neste momento cerca de meio milhão de imigrantes ilegais;
10. Dada a situação económica do país todas estas tendências tenderão a agravar-se nos próximos anos;
11. Em 2002 houve já um aumento das saídas de 32,9%, representando mais de 27 mil novos emigrantes, com especial incidência nas mulheres (INE) ;
12. Conclusão da CGTP (Carlos Trindade): exportamos hoje mão de obra qualificada em busca de emprego e de melhores salários, recebemos mão de obra barata, desprotegida e sem regalias sociais, em benefício claro dos empregadores;
13. A Assembleia da República recebeu, entre 26 e 28.06., os 97 conselheiros do Plenário do Conselho das Comunidades Portuguesas (o tal onde esteve presente aquele senhor ex-agente da PIDE que foi (ou esteve para ser, ou chegou a ser e depois não foi) condecorado pelo Presidente da Republica. O objectivo desta reunião seria discutir o apoio consular aos nossos emigrantes, o ensino da língua portuguesa, etc. Desconhecem-se ainda conclusões;
Eu não sou especialista destas matérias. Deixo aqui apenas os números recolhidos, que dão muito que pensar. Não posso deixar de considerar acertado o comentário transcrito da CGTP.
O Presidente da República (e o próprio Primeiro-Ministro) têm tentado promover a reflexão sobre estes temas. Refiro-me concretamente ao grupo de trabalho dinamizado pela Profª. Maria João Rodrigues (actual Presidente do Conselho da Comissão Europeia para as Ciências Sociais), trabalhando sobre temas como os da criatividade, inovação, produtividade e competitividade.
Aos interessados, não posso deixar de indicar a leitura do livro “Para Uma Política de Inovação em Portugal” (2003), publicado pela DQ (perdoem a publicidade justificada).
Mas deixo o que me parece ser uma terrível interrogação: para quem estamos de facto a formar os nossos trabalhadores e os nossos jovens licenciados? Quando é que estas políticas se orientarão também para os empregadores?
quarta-feira, julho 02, 2003
050 - FINALMENTE COMPANHIA
Saudemos aqui o aparecimento do blogue do editor Manuel Alberto Valente.
Desejamos-lhe muitos e bons posts.
Agora já poderão repartir com ele os ajustes de contas com os malvados dos editores.
Obrigado pelo link, que é coisa que eu ainda não aprendi a fazer...
Desejamos-lhe muitos e bons posts.
Agora já poderão repartir com ele os ajustes de contas com os malvados dos editores.
Obrigado pelo link, que é coisa que eu ainda não aprendi a fazer...
049 - OS NOVOS EMIGRANTES, 2
Continuo o tema do post 046. Tenho já alguns dados numéricos recolhidos e, como disse, voltarei a este assunto de um modo menos superficial.
Para já, com os meus agradecimentos, reproduzo um mail recebido e que me parece testemunho interessante sobre a questão:
From: sresende@iol.pt
To: ndematos@clix.pt
Sent: Wednesday, July 02, 2003 9:52 AM
Subject: emigrantes
Caro Nelson,
Sou uma das emigrantes a que fez referência no seu blog.
Em Fevereiro deste ano peguei nas malas (e como pesavam!) e avancei.
Cheguei a Madrid com trabalho, algo que nao tinha em Lisboa. A licenciatura, a pós-graduaçao, o conhecimento de línguas estrangeiras nao abrem muitas portas em Portugal.
O pouco que se consegue é com trabalho desproporcional à recompensa. Esta é ridícula, temporal, quando nao é nenhuma...
A minha anterior experiência profissional foi aterradora. A escravidao parece permanecer no espírito de muita gente...
Como nao gosto de repetir os erros, a melhor soluçao foi sair do casulo. Uma experiência interessante a todos os níveis.
De facto já é tempo de analisar o fenómeno da emigraçao. E estes novos emigrantes sao jovens, com estudos, curiosos e ambiciosos... Estou errada?
É tempo também de perceber quais as condiçoes que levam a que a massa cinzenta portuguesa tenha ganas de fugir do rectângulo...
(Já agora aproveito para o felicitar pelo seu blog)
Cumprimentos desde Madrid (e, como se percebe pela falta do til, desde um teclado espanhol)
Continuo o tema do post 046. Tenho já alguns dados numéricos recolhidos e, como disse, voltarei a este assunto de um modo menos superficial.
Para já, com os meus agradecimentos, reproduzo um mail recebido e que me parece testemunho interessante sobre a questão:
From: sresende@iol.pt
To: ndematos@clix.pt
Sent: Wednesday, July 02, 2003 9:52 AM
Subject: emigrantes
Caro Nelson,
Sou uma das emigrantes a que fez referência no seu blog.
Em Fevereiro deste ano peguei nas malas (e como pesavam!) e avancei.
Cheguei a Madrid com trabalho, algo que nao tinha em Lisboa. A licenciatura, a pós-graduaçao, o conhecimento de línguas estrangeiras nao abrem muitas portas em Portugal.
O pouco que se consegue é com trabalho desproporcional à recompensa. Esta é ridícula, temporal, quando nao é nenhuma...
A minha anterior experiência profissional foi aterradora. A escravidao parece permanecer no espírito de muita gente...
Como nao gosto de repetir os erros, a melhor soluçao foi sair do casulo. Uma experiência interessante a todos os níveis.
De facto já é tempo de analisar o fenómeno da emigraçao. E estes novos emigrantes sao jovens, com estudos, curiosos e ambiciosos... Estou errada?
É tempo também de perceber quais as condiçoes que levam a que a massa cinzenta portuguesa tenha ganas de fugir do rectângulo...
(Já agora aproveito para o felicitar pelo seu blog)
Cumprimentos desde Madrid (e, como se percebe pela falta do til, desde um teclado espanhol)
terça-feira, julho 01, 2003
048 - AUTORES, 3
Bom, parece que o texto sobre José Cardoso Pires teve algum agrado. Vale a pena continuar.
Aqui há uns dias, A Montanha Mágica publicou uns excertos de um conto de Vergílio Ferreira, dedicando-me essa publicação.
Agradeci, evidentemente. Creio que já disse algumas vezes que A Montanha Mágica é um dos blogues que visito diáriamente e onde sempre encontro motivos de interesse, de grande sensibilidade e bom gosto literário.
Retribuo agora a gentileza, arquivando por aqui esta memória de Vergílio Ferreira
VERGÍLIO FERREIRA
Enterrei hoje minha mulher – porque lhe chamo minha mulher? Enterrei-a eu próprio no fundo do quintal, debaixo da velha figueira. Levá-la para o cemitério, e como? Fica longe. Ela pedira-mo uma vez, inesperadamente, acordando-me a meio da noite. Queria que a enterrasse junto ao muro que dá para o caminho, porque se vê daí a casa dela. Habituara-se a olhar para aquele sítio depois que ficou só. E pensava: “verei dali a janela do meu quarto”. Mas teria de transportá-la para lá. Não tenho forças e cai neve. A quantos estamos? É Inverno, Dezembro, talvez, ou Janeiro.
Assim começa aquele que é, a meu ver, um dos mais enigmáticos e fascinantes romances da literatura portuguesa contemporânea: Alegria Breve, de Vergílio Ferreira, publicado em 1965, data em que as nossas relações foram estreitas e amigáveis.
Eu era um jovem candidato a escritor, bastante influenciado pela sua escrita e pelas suas ideias sobre a arte e a literatura; Vergílio gostava de abrir as asas do capote e de ter debaixo delas o que chamava de “os seus discípulos” que, por essa altura, eram eu e o Almeida Faria, a quem ele havia prefaciado o romance Rumor Branco, um acontecimento literário juvenil nesse inicio dos anos sessenta, prémio revelação de romance (1962) da então Sociedade Portuguesa de Escritores.
Como nessa altura ainda não havia computadores nem e-mails, trocávamos longas cartas manuscritas em que Vergílio, pacientemente, nos ia chamando a atenção para o trabalho sobre a escrita, nos ia ensinando o rigor, a seriedade e a disciplina, ao mesmo tempo que nos recomendava a leitura de alguns textos fundamentais e nos transmitia o seu amor pela literatura e a paixão pelas ideias.
Além de escritor era então professor no Liceu Camões, depois de o ter sido em Évora, onde escreveu Aparição.
Nunca foi meu professor e disso tenho desgosto, embora com surpresa de ambos lhe tenha caído nas mãos, como externo, no meu exame do então 7º ano do liceu. Lembro-me que falámos de Pessoa, Raul Brandão e Eça de Queiroz, durante um exame que durou mais do que seria normal.
Vergílio não era um homem mundano, muito antes pelo contrário, evitava as festas e as apresentações literárias, apreciava a leitura e o trabalho da escrita no recato da sua casa. Era para lá que me convidava por diversas vezes para podermos conversar tranquilamente, durante a tarde, num ambiente de semi-obscuridade que não esqueci, rodeados pelos seus livros. Ou em Fontanelas, onde às vezes reunia no verão os seus amigos, que ia buscar e levar, num velho Volkswagen, à estação dos comboios de Sintra. Foi através dele que pude conhecer Eduardo Lourenço, António Ramos Rosa, Fernando Namora, o pintor Cruzeiro Seixas e muitos outros.
Alguns anos mais tarde, já durante o período aceso da revolução de 25 de Abril, fui seu editor na Arcádia, durante alguns anos, até à extinção desta editora e à sua saída para a Bertrand.
Vergílio vinha pelo meio tarde, às vezes acompanhado por Cesariny, Natália ou Cruzeiro Seixas, sentava-se a conversar, distraído, como se o tempo não fosse tempo, como se eu não tivesse trabalho para fazer, como se todos em volta tivéssemos que parar para lhe dar atenção. Era o período aceso da revolução, setenta e cinco, talvez. Discutia-se política, os boatos constantes, as ameaças da “reacção”, os golpes e contra-golpes ou, no que o preocupava especialmente, as “pressões centralistas do PC”.
Entregou-me, por essa altura, um romance que, no conjunto da sua obra, nunca apreciei especialmente, “Rápida, a Sombra”, 1975, onde creio que ajustou comigo algumas contas antigas através do retrato de um crítico literário (Túlio, que era o nome do meu pai), “um patife que eu trouxe ao colo e depois me cuspiu”, “…que me imitou tudo. Até a letra.”.
Isto porque entretanto, atrevidamente, eu havia “desancado” com alguma violência o seu Post-Scriptum Sobre a Revolução Estudantil de Maio de 1968, incluído como posfácio à edição de Invocação ao Meu Corpo (1969), texto esse em que Vergílio considerava, ironicamente, que eu praticara “a morte do Pai”, invocando-me a propósito, por várias vezes, a célebre frase de Lèon Chéstov, “os jovens matam e comem os velhos”.
Tenho uma especial recordação dessas tardes acesas na Arcádia, em que autor e editor discutiam, esquecidos, os problemas da democracia que começávamos a viver. Com ele a discussão nunca era fácil, antes exigente e rigorosa. Para além de, na altura, não estarmos em posições coincidentes, Vergílio já tinha tudo pensado, a sua cabeça era uma máquina de pensar, as suas ideias iam buscar, lá atrás, as raízes culturais, a enorme informação, as leituras em nada desatentas. Tinha explicações para tudo e tudo nele estava pensado até ao último argumento.
Vergílio não era o que os editores chamam um autor difícil. Os seus textos eram minuciosamente revistos por si próprio antes da entrega ao editor, emendados até à exaustão na sua letra minúscula, sempre com a mesma caneta de tinta permanente e em cor preta. Durante as provas poucas emendas fazia, tanto quanto me recordo, a não ser as das “gralhas” com que deveras se irritava.
Já comigo na Dom Quixote continuou a procurar-me, manifestando por diversas vezes a sua vontade de se juntar ao trabalho que eu fazia com os restantes escritores da editora. Mas a Dom Quixote, nessa altura, não teve condições para dar resposta ao trabalho que ele merecia.
Morreu uma tarde, em 1996, pouco depois de ter completado 80 anos, enquanto escrevia, deixando a sua habitual caneta de tinta permanente cair sobre um texto inacabado. Escrevendo, escrevendo sempre.
Não podia ter sido de outro modo.
Nos últimos anos havia surpreendido de novo toda a gente com a insuportável beleza e mestria dos seus últimos romances, nomeadamente Para Sempre, Até ao Fim e Cartas a Sandra, este ultimo, premonitoriamente, terminando a meio de uma frase, a meio de uma palavra, tal como a vida lhe haveria de fazer a ele.
A sua obra singular, o romance, o ensaio, o diário e os testemunhos, à medida que o tempo passa, agiganta-se em toda a sua monumentalidade. Vergílio não foi um escritor amado pelos seus pares, não foi sequer um autor muito traduzido para outras línguas e só já em plena democracia alguns críticos de uma geração mais nova deram a atenção devida à sua obra. Mas essa obra aí está, lutando contra tudo o que a silenciava, impondo-se como um dos momentos mais altos da literatura portuguesa do século vinte.
Publicado no DNA de 05.04.2003
Bom, parece que o texto sobre José Cardoso Pires teve algum agrado. Vale a pena continuar.
Aqui há uns dias, A Montanha Mágica publicou uns excertos de um conto de Vergílio Ferreira, dedicando-me essa publicação.
Agradeci, evidentemente. Creio que já disse algumas vezes que A Montanha Mágica é um dos blogues que visito diáriamente e onde sempre encontro motivos de interesse, de grande sensibilidade e bom gosto literário.
Retribuo agora a gentileza, arquivando por aqui esta memória de Vergílio Ferreira
VERGÍLIO FERREIRA
Enterrei hoje minha mulher – porque lhe chamo minha mulher? Enterrei-a eu próprio no fundo do quintal, debaixo da velha figueira. Levá-la para o cemitério, e como? Fica longe. Ela pedira-mo uma vez, inesperadamente, acordando-me a meio da noite. Queria que a enterrasse junto ao muro que dá para o caminho, porque se vê daí a casa dela. Habituara-se a olhar para aquele sítio depois que ficou só. E pensava: “verei dali a janela do meu quarto”. Mas teria de transportá-la para lá. Não tenho forças e cai neve. A quantos estamos? É Inverno, Dezembro, talvez, ou Janeiro.
Assim começa aquele que é, a meu ver, um dos mais enigmáticos e fascinantes romances da literatura portuguesa contemporânea: Alegria Breve, de Vergílio Ferreira, publicado em 1965, data em que as nossas relações foram estreitas e amigáveis.
Eu era um jovem candidato a escritor, bastante influenciado pela sua escrita e pelas suas ideias sobre a arte e a literatura; Vergílio gostava de abrir as asas do capote e de ter debaixo delas o que chamava de “os seus discípulos” que, por essa altura, eram eu e o Almeida Faria, a quem ele havia prefaciado o romance Rumor Branco, um acontecimento literário juvenil nesse inicio dos anos sessenta, prémio revelação de romance (1962) da então Sociedade Portuguesa de Escritores.
Como nessa altura ainda não havia computadores nem e-mails, trocávamos longas cartas manuscritas em que Vergílio, pacientemente, nos ia chamando a atenção para o trabalho sobre a escrita, nos ia ensinando o rigor, a seriedade e a disciplina, ao mesmo tempo que nos recomendava a leitura de alguns textos fundamentais e nos transmitia o seu amor pela literatura e a paixão pelas ideias.
Além de escritor era então professor no Liceu Camões, depois de o ter sido em Évora, onde escreveu Aparição.
Nunca foi meu professor e disso tenho desgosto, embora com surpresa de ambos lhe tenha caído nas mãos, como externo, no meu exame do então 7º ano do liceu. Lembro-me que falámos de Pessoa, Raul Brandão e Eça de Queiroz, durante um exame que durou mais do que seria normal.
Vergílio não era um homem mundano, muito antes pelo contrário, evitava as festas e as apresentações literárias, apreciava a leitura e o trabalho da escrita no recato da sua casa. Era para lá que me convidava por diversas vezes para podermos conversar tranquilamente, durante a tarde, num ambiente de semi-obscuridade que não esqueci, rodeados pelos seus livros. Ou em Fontanelas, onde às vezes reunia no verão os seus amigos, que ia buscar e levar, num velho Volkswagen, à estação dos comboios de Sintra. Foi através dele que pude conhecer Eduardo Lourenço, António Ramos Rosa, Fernando Namora, o pintor Cruzeiro Seixas e muitos outros.
Alguns anos mais tarde, já durante o período aceso da revolução de 25 de Abril, fui seu editor na Arcádia, durante alguns anos, até à extinção desta editora e à sua saída para a Bertrand.
Vergílio vinha pelo meio tarde, às vezes acompanhado por Cesariny, Natália ou Cruzeiro Seixas, sentava-se a conversar, distraído, como se o tempo não fosse tempo, como se eu não tivesse trabalho para fazer, como se todos em volta tivéssemos que parar para lhe dar atenção. Era o período aceso da revolução, setenta e cinco, talvez. Discutia-se política, os boatos constantes, as ameaças da “reacção”, os golpes e contra-golpes ou, no que o preocupava especialmente, as “pressões centralistas do PC”.
Entregou-me, por essa altura, um romance que, no conjunto da sua obra, nunca apreciei especialmente, “Rápida, a Sombra”, 1975, onde creio que ajustou comigo algumas contas antigas através do retrato de um crítico literário (Túlio, que era o nome do meu pai), “um patife que eu trouxe ao colo e depois me cuspiu”, “…que me imitou tudo. Até a letra.”.
Isto porque entretanto, atrevidamente, eu havia “desancado” com alguma violência o seu Post-Scriptum Sobre a Revolução Estudantil de Maio de 1968, incluído como posfácio à edição de Invocação ao Meu Corpo (1969), texto esse em que Vergílio considerava, ironicamente, que eu praticara “a morte do Pai”, invocando-me a propósito, por várias vezes, a célebre frase de Lèon Chéstov, “os jovens matam e comem os velhos”.
Tenho uma especial recordação dessas tardes acesas na Arcádia, em que autor e editor discutiam, esquecidos, os problemas da democracia que começávamos a viver. Com ele a discussão nunca era fácil, antes exigente e rigorosa. Para além de, na altura, não estarmos em posições coincidentes, Vergílio já tinha tudo pensado, a sua cabeça era uma máquina de pensar, as suas ideias iam buscar, lá atrás, as raízes culturais, a enorme informação, as leituras em nada desatentas. Tinha explicações para tudo e tudo nele estava pensado até ao último argumento.
Vergílio não era o que os editores chamam um autor difícil. Os seus textos eram minuciosamente revistos por si próprio antes da entrega ao editor, emendados até à exaustão na sua letra minúscula, sempre com a mesma caneta de tinta permanente e em cor preta. Durante as provas poucas emendas fazia, tanto quanto me recordo, a não ser as das “gralhas” com que deveras se irritava.
Já comigo na Dom Quixote continuou a procurar-me, manifestando por diversas vezes a sua vontade de se juntar ao trabalho que eu fazia com os restantes escritores da editora. Mas a Dom Quixote, nessa altura, não teve condições para dar resposta ao trabalho que ele merecia.
Morreu uma tarde, em 1996, pouco depois de ter completado 80 anos, enquanto escrevia, deixando a sua habitual caneta de tinta permanente cair sobre um texto inacabado. Escrevendo, escrevendo sempre.
Não podia ter sido de outro modo.
Nos últimos anos havia surpreendido de novo toda a gente com a insuportável beleza e mestria dos seus últimos romances, nomeadamente Para Sempre, Até ao Fim e Cartas a Sandra, este ultimo, premonitoriamente, terminando a meio de uma frase, a meio de uma palavra, tal como a vida lhe haveria de fazer a ele.
A sua obra singular, o romance, o ensaio, o diário e os testemunhos, à medida que o tempo passa, agiganta-se em toda a sua monumentalidade. Vergílio não foi um escritor amado pelos seus pares, não foi sequer um autor muito traduzido para outras línguas e só já em plena democracia alguns críticos de uma geração mais nova deram a atenção devida à sua obra. Mas essa obra aí está, lutando contra tudo o que a silenciava, impondo-se como um dos momentos mais altos da literatura portuguesa do século vinte.
Publicado no DNA de 05.04.2003
047 - PELA MANHÃ, OS JORNAIS
Leio os jornais, pelo início da manhã.
Logo na primeira página do DN, encontro:
"Rodrigo Santiago, (vírgula) advogado de Jorge Ritto, (vírgula) arguido no processo de pedofilia da Casa Pia, (vírgula) admite aceitar a acusação que o Ministério Público venha a deduzir contra o seu cliente, (vírgula) abdicando, (vírgula) assim, (vírgula) de requerer a abertura de instrução do processo, (vírgula) de modo a acelerar o julgamento."
Concluímos assim: que o advogado de Jorge Ritto se encontra também arguido no processo de pedofilia; ou que o jornalista que redigiu a notícia não conhece as regras gramaticais da língua com que trabalha.
Mas na última página do Público:
Húmus, de Raul Brandão. "Um diário? Um romance? Mesmo que inclassificável, trata-se de "uma obra-prima em qualquer literatura", dirá David Mourão-Ferreira".
Dirá ?
Leio os jornais, pelo início da manhã.
Logo na primeira página do DN, encontro:
"Rodrigo Santiago, (vírgula) advogado de Jorge Ritto, (vírgula) arguido no processo de pedofilia da Casa Pia, (vírgula) admite aceitar a acusação que o Ministério Público venha a deduzir contra o seu cliente, (vírgula) abdicando, (vírgula) assim, (vírgula) de requerer a abertura de instrução do processo, (vírgula) de modo a acelerar o julgamento."
Concluímos assim: que o advogado de Jorge Ritto se encontra também arguido no processo de pedofilia; ou que o jornalista que redigiu a notícia não conhece as regras gramaticais da língua com que trabalha.
Mas na última página do Público:
Húmus, de Raul Brandão. "Um diário? Um romance? Mesmo que inclassificável, trata-se de "uma obra-prima em qualquer literatura", dirá David Mourão-Ferreira".
Dirá ?