terça-feira, julho 01, 2003
048 - AUTORES, 3
Bom, parece que o texto sobre José Cardoso Pires teve algum agrado. Vale a pena continuar.
Aqui há uns dias, A Montanha Mágica publicou uns excertos de um conto de Vergílio Ferreira, dedicando-me essa publicação.
Agradeci, evidentemente. Creio que já disse algumas vezes que A Montanha Mágica é um dos blogues que visito diáriamente e onde sempre encontro motivos de interesse, de grande sensibilidade e bom gosto literário.
Retribuo agora a gentileza, arquivando por aqui esta memória de Vergílio Ferreira
VERGÍLIO FERREIRA
Enterrei hoje minha mulher – porque lhe chamo minha mulher? Enterrei-a eu próprio no fundo do quintal, debaixo da velha figueira. Levá-la para o cemitério, e como? Fica longe. Ela pedira-mo uma vez, inesperadamente, acordando-me a meio da noite. Queria que a enterrasse junto ao muro que dá para o caminho, porque se vê daí a casa dela. Habituara-se a olhar para aquele sítio depois que ficou só. E pensava: “verei dali a janela do meu quarto”. Mas teria de transportá-la para lá. Não tenho forças e cai neve. A quantos estamos? É Inverno, Dezembro, talvez, ou Janeiro.
Assim começa aquele que é, a meu ver, um dos mais enigmáticos e fascinantes romances da literatura portuguesa contemporânea: Alegria Breve, de Vergílio Ferreira, publicado em 1965, data em que as nossas relações foram estreitas e amigáveis.
Eu era um jovem candidato a escritor, bastante influenciado pela sua escrita e pelas suas ideias sobre a arte e a literatura; Vergílio gostava de abrir as asas do capote e de ter debaixo delas o que chamava de “os seus discípulos” que, por essa altura, eram eu e o Almeida Faria, a quem ele havia prefaciado o romance Rumor Branco, um acontecimento literário juvenil nesse inicio dos anos sessenta, prémio revelação de romance (1962) da então Sociedade Portuguesa de Escritores.
Como nessa altura ainda não havia computadores nem e-mails, trocávamos longas cartas manuscritas em que Vergílio, pacientemente, nos ia chamando a atenção para o trabalho sobre a escrita, nos ia ensinando o rigor, a seriedade e a disciplina, ao mesmo tempo que nos recomendava a leitura de alguns textos fundamentais e nos transmitia o seu amor pela literatura e a paixão pelas ideias.
Além de escritor era então professor no Liceu Camões, depois de o ter sido em Évora, onde escreveu Aparição.
Nunca foi meu professor e disso tenho desgosto, embora com surpresa de ambos lhe tenha caído nas mãos, como externo, no meu exame do então 7º ano do liceu. Lembro-me que falámos de Pessoa, Raul Brandão e Eça de Queiroz, durante um exame que durou mais do que seria normal.
Vergílio não era um homem mundano, muito antes pelo contrário, evitava as festas e as apresentações literárias, apreciava a leitura e o trabalho da escrita no recato da sua casa. Era para lá que me convidava por diversas vezes para podermos conversar tranquilamente, durante a tarde, num ambiente de semi-obscuridade que não esqueci, rodeados pelos seus livros. Ou em Fontanelas, onde às vezes reunia no verão os seus amigos, que ia buscar e levar, num velho Volkswagen, à estação dos comboios de Sintra. Foi através dele que pude conhecer Eduardo Lourenço, António Ramos Rosa, Fernando Namora, o pintor Cruzeiro Seixas e muitos outros.
Alguns anos mais tarde, já durante o período aceso da revolução de 25 de Abril, fui seu editor na Arcádia, durante alguns anos, até à extinção desta editora e à sua saída para a Bertrand.
Vergílio vinha pelo meio tarde, às vezes acompanhado por Cesariny, Natália ou Cruzeiro Seixas, sentava-se a conversar, distraído, como se o tempo não fosse tempo, como se eu não tivesse trabalho para fazer, como se todos em volta tivéssemos que parar para lhe dar atenção. Era o período aceso da revolução, setenta e cinco, talvez. Discutia-se política, os boatos constantes, as ameaças da “reacção”, os golpes e contra-golpes ou, no que o preocupava especialmente, as “pressões centralistas do PC”.
Entregou-me, por essa altura, um romance que, no conjunto da sua obra, nunca apreciei especialmente, “Rápida, a Sombra”, 1975, onde creio que ajustou comigo algumas contas antigas através do retrato de um crítico literário (Túlio, que era o nome do meu pai), “um patife que eu trouxe ao colo e depois me cuspiu”, “…que me imitou tudo. Até a letra.”.
Isto porque entretanto, atrevidamente, eu havia “desancado” com alguma violência o seu Post-Scriptum Sobre a Revolução Estudantil de Maio de 1968, incluído como posfácio à edição de Invocação ao Meu Corpo (1969), texto esse em que Vergílio considerava, ironicamente, que eu praticara “a morte do Pai”, invocando-me a propósito, por várias vezes, a célebre frase de Lèon Chéstov, “os jovens matam e comem os velhos”.
Tenho uma especial recordação dessas tardes acesas na Arcádia, em que autor e editor discutiam, esquecidos, os problemas da democracia que começávamos a viver. Com ele a discussão nunca era fácil, antes exigente e rigorosa. Para além de, na altura, não estarmos em posições coincidentes, Vergílio já tinha tudo pensado, a sua cabeça era uma máquina de pensar, as suas ideias iam buscar, lá atrás, as raízes culturais, a enorme informação, as leituras em nada desatentas. Tinha explicações para tudo e tudo nele estava pensado até ao último argumento.
Vergílio não era o que os editores chamam um autor difícil. Os seus textos eram minuciosamente revistos por si próprio antes da entrega ao editor, emendados até à exaustão na sua letra minúscula, sempre com a mesma caneta de tinta permanente e em cor preta. Durante as provas poucas emendas fazia, tanto quanto me recordo, a não ser as das “gralhas” com que deveras se irritava.
Já comigo na Dom Quixote continuou a procurar-me, manifestando por diversas vezes a sua vontade de se juntar ao trabalho que eu fazia com os restantes escritores da editora. Mas a Dom Quixote, nessa altura, não teve condições para dar resposta ao trabalho que ele merecia.
Morreu uma tarde, em 1996, pouco depois de ter completado 80 anos, enquanto escrevia, deixando a sua habitual caneta de tinta permanente cair sobre um texto inacabado. Escrevendo, escrevendo sempre.
Não podia ter sido de outro modo.
Nos últimos anos havia surpreendido de novo toda a gente com a insuportável beleza e mestria dos seus últimos romances, nomeadamente Para Sempre, Até ao Fim e Cartas a Sandra, este ultimo, premonitoriamente, terminando a meio de uma frase, a meio de uma palavra, tal como a vida lhe haveria de fazer a ele.
A sua obra singular, o romance, o ensaio, o diário e os testemunhos, à medida que o tempo passa, agiganta-se em toda a sua monumentalidade. Vergílio não foi um escritor amado pelos seus pares, não foi sequer um autor muito traduzido para outras línguas e só já em plena democracia alguns críticos de uma geração mais nova deram a atenção devida à sua obra. Mas essa obra aí está, lutando contra tudo o que a silenciava, impondo-se como um dos momentos mais altos da literatura portuguesa do século vinte.
Publicado no DNA de 05.04.2003
Bom, parece que o texto sobre José Cardoso Pires teve algum agrado. Vale a pena continuar.
Aqui há uns dias, A Montanha Mágica publicou uns excertos de um conto de Vergílio Ferreira, dedicando-me essa publicação.
Agradeci, evidentemente. Creio que já disse algumas vezes que A Montanha Mágica é um dos blogues que visito diáriamente e onde sempre encontro motivos de interesse, de grande sensibilidade e bom gosto literário.
Retribuo agora a gentileza, arquivando por aqui esta memória de Vergílio Ferreira
VERGÍLIO FERREIRA
Enterrei hoje minha mulher – porque lhe chamo minha mulher? Enterrei-a eu próprio no fundo do quintal, debaixo da velha figueira. Levá-la para o cemitério, e como? Fica longe. Ela pedira-mo uma vez, inesperadamente, acordando-me a meio da noite. Queria que a enterrasse junto ao muro que dá para o caminho, porque se vê daí a casa dela. Habituara-se a olhar para aquele sítio depois que ficou só. E pensava: “verei dali a janela do meu quarto”. Mas teria de transportá-la para lá. Não tenho forças e cai neve. A quantos estamos? É Inverno, Dezembro, talvez, ou Janeiro.
Assim começa aquele que é, a meu ver, um dos mais enigmáticos e fascinantes romances da literatura portuguesa contemporânea: Alegria Breve, de Vergílio Ferreira, publicado em 1965, data em que as nossas relações foram estreitas e amigáveis.
Eu era um jovem candidato a escritor, bastante influenciado pela sua escrita e pelas suas ideias sobre a arte e a literatura; Vergílio gostava de abrir as asas do capote e de ter debaixo delas o que chamava de “os seus discípulos” que, por essa altura, eram eu e o Almeida Faria, a quem ele havia prefaciado o romance Rumor Branco, um acontecimento literário juvenil nesse inicio dos anos sessenta, prémio revelação de romance (1962) da então Sociedade Portuguesa de Escritores.
Como nessa altura ainda não havia computadores nem e-mails, trocávamos longas cartas manuscritas em que Vergílio, pacientemente, nos ia chamando a atenção para o trabalho sobre a escrita, nos ia ensinando o rigor, a seriedade e a disciplina, ao mesmo tempo que nos recomendava a leitura de alguns textos fundamentais e nos transmitia o seu amor pela literatura e a paixão pelas ideias.
Além de escritor era então professor no Liceu Camões, depois de o ter sido em Évora, onde escreveu Aparição.
Nunca foi meu professor e disso tenho desgosto, embora com surpresa de ambos lhe tenha caído nas mãos, como externo, no meu exame do então 7º ano do liceu. Lembro-me que falámos de Pessoa, Raul Brandão e Eça de Queiroz, durante um exame que durou mais do que seria normal.
Vergílio não era um homem mundano, muito antes pelo contrário, evitava as festas e as apresentações literárias, apreciava a leitura e o trabalho da escrita no recato da sua casa. Era para lá que me convidava por diversas vezes para podermos conversar tranquilamente, durante a tarde, num ambiente de semi-obscuridade que não esqueci, rodeados pelos seus livros. Ou em Fontanelas, onde às vezes reunia no verão os seus amigos, que ia buscar e levar, num velho Volkswagen, à estação dos comboios de Sintra. Foi através dele que pude conhecer Eduardo Lourenço, António Ramos Rosa, Fernando Namora, o pintor Cruzeiro Seixas e muitos outros.
Alguns anos mais tarde, já durante o período aceso da revolução de 25 de Abril, fui seu editor na Arcádia, durante alguns anos, até à extinção desta editora e à sua saída para a Bertrand.
Vergílio vinha pelo meio tarde, às vezes acompanhado por Cesariny, Natália ou Cruzeiro Seixas, sentava-se a conversar, distraído, como se o tempo não fosse tempo, como se eu não tivesse trabalho para fazer, como se todos em volta tivéssemos que parar para lhe dar atenção. Era o período aceso da revolução, setenta e cinco, talvez. Discutia-se política, os boatos constantes, as ameaças da “reacção”, os golpes e contra-golpes ou, no que o preocupava especialmente, as “pressões centralistas do PC”.
Entregou-me, por essa altura, um romance que, no conjunto da sua obra, nunca apreciei especialmente, “Rápida, a Sombra”, 1975, onde creio que ajustou comigo algumas contas antigas através do retrato de um crítico literário (Túlio, que era o nome do meu pai), “um patife que eu trouxe ao colo e depois me cuspiu”, “…que me imitou tudo. Até a letra.”.
Isto porque entretanto, atrevidamente, eu havia “desancado” com alguma violência o seu Post-Scriptum Sobre a Revolução Estudantil de Maio de 1968, incluído como posfácio à edição de Invocação ao Meu Corpo (1969), texto esse em que Vergílio considerava, ironicamente, que eu praticara “a morte do Pai”, invocando-me a propósito, por várias vezes, a célebre frase de Lèon Chéstov, “os jovens matam e comem os velhos”.
Tenho uma especial recordação dessas tardes acesas na Arcádia, em que autor e editor discutiam, esquecidos, os problemas da democracia que começávamos a viver. Com ele a discussão nunca era fácil, antes exigente e rigorosa. Para além de, na altura, não estarmos em posições coincidentes, Vergílio já tinha tudo pensado, a sua cabeça era uma máquina de pensar, as suas ideias iam buscar, lá atrás, as raízes culturais, a enorme informação, as leituras em nada desatentas. Tinha explicações para tudo e tudo nele estava pensado até ao último argumento.
Vergílio não era o que os editores chamam um autor difícil. Os seus textos eram minuciosamente revistos por si próprio antes da entrega ao editor, emendados até à exaustão na sua letra minúscula, sempre com a mesma caneta de tinta permanente e em cor preta. Durante as provas poucas emendas fazia, tanto quanto me recordo, a não ser as das “gralhas” com que deveras se irritava.
Já comigo na Dom Quixote continuou a procurar-me, manifestando por diversas vezes a sua vontade de se juntar ao trabalho que eu fazia com os restantes escritores da editora. Mas a Dom Quixote, nessa altura, não teve condições para dar resposta ao trabalho que ele merecia.
Morreu uma tarde, em 1996, pouco depois de ter completado 80 anos, enquanto escrevia, deixando a sua habitual caneta de tinta permanente cair sobre um texto inacabado. Escrevendo, escrevendo sempre.
Não podia ter sido de outro modo.
Nos últimos anos havia surpreendido de novo toda a gente com a insuportável beleza e mestria dos seus últimos romances, nomeadamente Para Sempre, Até ao Fim e Cartas a Sandra, este ultimo, premonitoriamente, terminando a meio de uma frase, a meio de uma palavra, tal como a vida lhe haveria de fazer a ele.
A sua obra singular, o romance, o ensaio, o diário e os testemunhos, à medida que o tempo passa, agiganta-se em toda a sua monumentalidade. Vergílio não foi um escritor amado pelos seus pares, não foi sequer um autor muito traduzido para outras línguas e só já em plena democracia alguns críticos de uma geração mais nova deram a atenção devida à sua obra. Mas essa obra aí está, lutando contra tudo o que a silenciava, impondo-se como um dos momentos mais altos da literatura portuguesa do século vinte.
Publicado no DNA de 05.04.2003