segunda-feira, julho 07, 2003
056 - A LITERATURA E O ENSINO DA LÍNGUA
Aqui fica mais um texto arquivado.
Publicado no DNA de 05.07.2003
Aqui fica mais um texto arquivado.
Publicado no DNA de 05.07.2003
“Nela (na literatura) se jogam trabalho e não trabalho, jogo e artesania, mas também conhecimento, modulações dos afectos e aquela aprendizagem ética que nenhum decálogo e nenhuma catequese nos podem proporcionar”
Manuel Gusmão
Quando alguém procura uma dessas escolas de aprendizagem rápida do francês, inglês ou alemão, pode dizer-se que pretende sobretudo aceder a uma utilização instrumental dessas línguas. Para efeitos de negócios, de trabalho, de viagens, ou para mera comunicação elementar.
Trata-se de uma das mais simples funções da linguagem: a estrita comunicação veicular. As palavras ligam-se às coisas e às situações e permitem-nos falar delas tal e qual são, como seus meros referentes. A Lua é apenas o satélite da terra; o Sol, uma simples estrela.
Ninguém pensaria, porém, enviar um filho para uma dessas escolas para aí aprender, do mesmo modo, a língua materna.
Isto porque a linguagem tem outras funções (nomeadamente aquela que alguns linguistas designam ainda como a função poética) e que evidentemente não é possível colocar em evidência fora do campo onde predominantemente se utiliza: a literatura – onde o tal satélite da terra poderá denominar-se, por exemplo, como aquela “foice de prata”, ou o sol por “astro-rei”.
Dizia o linguista Èmile Benveniste que sem a aquisição da linguagem não é possível falar em pensamento. Que não é possível pensar sem ter por base o domínio de uma língua. A aquisição da linguagem pelas crianças está aliás intimamente ligada à consciência do mundo que as rodeia. Inicialmente as crianças aprendem a relacionar as palavras e as coisas, enquanto meros referentes umas das outras, só depois acedem, lentamente, à faculdade de simbolizar. É esta faculdade que lhes permite distanciar a palavra do objecto de que ela é o referente, formulando um conceito distinto e de mais larga significação. É este poder da linguagem que instaura a realidade imaginária, faz das coisas outras coisas, mostra o que não é visível, diz o que não está dito, possibilita o que não é possível, cria o que não existe, modula ou amplia os sentimentos e as emoções.
Vem tudo isto a propósito da recente discussão acerca das propostas de alterações introduzidas nos programas do ensino secundário e da progressiva e dramática secundarização do ensino da literatura no âmbito mais geral do ensino da língua.
Questão que tem motivado algumas polémicas apaixonadas mas de escasso rigor científico, sobretudo quando questionaram a diminuição do estudo de alguns textos fundadores da nossa literatura, como é o caso, por exemplo, de Os Lusíadas. Mas que felizmente motivaram dois textos que julgo importantes de António Guerreiro e Manuel Gusmão, publicados na revista ACTUAL, do Expresso de 1 de Março passado, chamando a atenção para o risco que representa o facto de a literatura “ocupar um lugar cada vez mais residual nos programas do Secundário”. Na teoria, como na prática; dadas as queixas dos professores sobre a impossibilidade de “dar a ler convenientemente” o que se encontra prescrito.
A tese dos programadores destas alterações é que o ensino se deve aproximar cada vez mais da preparação do estudante para o mundo do trabalho (o chamado mundo das realidades), libertando-o das disciplinas que representam o que aparentemente é inútil (as disciplinas de humanidades) e, portanto, pode e deve ser suprimido sem perdas imediatas. Os perigos são evidentes, e cito Jacques Derrida através do texto já referido de António Guerreiro: “simplificação acelerada, manipulação, homogeneização, submissão da investigação a cálculos de rentabilidade imediata, marketing intelectual, destruição da cultura literária”.
Em Portugal, como as coisas ainda hoje continuam a chegar com muito atraso, está agora a tentar implantar-se uma tendência que em muitos outros países, como a França, a Itália, a Alemanha, se detectou há muito que deve ser corrigida. Tendência essa que, como refere Manuel Gusmão, parte do principio redutor e obsceno de que o ensino da literatura “só atrapalha o ensino da língua”.
Ora, ao contrário, é o ensino da língua materna, se desligado desse modo de usar a língua que representa a experiência literária, dos próprios usos e costumes de uma língua que nela vai retendo a experiência e a história de um povo, que sairá enormemente empobrecido.
Em toda a Europa (pelo menos) cada vez mais se caminha para que o ensino da literatura (e da história da literatura enquanto parte da história das ideias) se relacione de perto com o ensino da língua. Isto porque a faculdade de simbolizar se encontra na origem de todo o pensamento, da faculdade de conceptualizar. O pensamento, também referia Benveniste, não é outra coisa que o poder de construir representações e de operar sobre elas.
Atrasar esta faculdade para um grau de ensino superior ao Secundário, privar o estudante da aquisição de um pensamento crítico, do desenvolvimento das suas capacidades criadoras é, como bem refere Manuel Gusmão, limitar “de forma injusta as possibilidades de encontro com a literatura, por parte daqueles que provavelmente só na escola a poderão encontrar”.
Esperemos que alguém no Ministério da Educação esteja em condições de reflectir sobre isto. Submersos pelo linguarejar simplificado das mensagens telefónicas escritas, dos computadores, dos jogos electrónicos, da locução nas rádios e nas televisões, da escrita apressada dos jornais e revistas de socialites, dos discursos dos políticos sem cultura literária, da má literatura, estaremos certamente a criar uma geração ainda mais tatibitate que aquela com a qual hoje convivemos.
Manuel Gusmão
Quando alguém procura uma dessas escolas de aprendizagem rápida do francês, inglês ou alemão, pode dizer-se que pretende sobretudo aceder a uma utilização instrumental dessas línguas. Para efeitos de negócios, de trabalho, de viagens, ou para mera comunicação elementar.
Trata-se de uma das mais simples funções da linguagem: a estrita comunicação veicular. As palavras ligam-se às coisas e às situações e permitem-nos falar delas tal e qual são, como seus meros referentes. A Lua é apenas o satélite da terra; o Sol, uma simples estrela.
Ninguém pensaria, porém, enviar um filho para uma dessas escolas para aí aprender, do mesmo modo, a língua materna.
Isto porque a linguagem tem outras funções (nomeadamente aquela que alguns linguistas designam ainda como a função poética) e que evidentemente não é possível colocar em evidência fora do campo onde predominantemente se utiliza: a literatura – onde o tal satélite da terra poderá denominar-se, por exemplo, como aquela “foice de prata”, ou o sol por “astro-rei”.
Dizia o linguista Èmile Benveniste que sem a aquisição da linguagem não é possível falar em pensamento. Que não é possível pensar sem ter por base o domínio de uma língua. A aquisição da linguagem pelas crianças está aliás intimamente ligada à consciência do mundo que as rodeia. Inicialmente as crianças aprendem a relacionar as palavras e as coisas, enquanto meros referentes umas das outras, só depois acedem, lentamente, à faculdade de simbolizar. É esta faculdade que lhes permite distanciar a palavra do objecto de que ela é o referente, formulando um conceito distinto e de mais larga significação. É este poder da linguagem que instaura a realidade imaginária, faz das coisas outras coisas, mostra o que não é visível, diz o que não está dito, possibilita o que não é possível, cria o que não existe, modula ou amplia os sentimentos e as emoções.
Vem tudo isto a propósito da recente discussão acerca das propostas de alterações introduzidas nos programas do ensino secundário e da progressiva e dramática secundarização do ensino da literatura no âmbito mais geral do ensino da língua.
Questão que tem motivado algumas polémicas apaixonadas mas de escasso rigor científico, sobretudo quando questionaram a diminuição do estudo de alguns textos fundadores da nossa literatura, como é o caso, por exemplo, de Os Lusíadas. Mas que felizmente motivaram dois textos que julgo importantes de António Guerreiro e Manuel Gusmão, publicados na revista ACTUAL, do Expresso de 1 de Março passado, chamando a atenção para o risco que representa o facto de a literatura “ocupar um lugar cada vez mais residual nos programas do Secundário”. Na teoria, como na prática; dadas as queixas dos professores sobre a impossibilidade de “dar a ler convenientemente” o que se encontra prescrito.
A tese dos programadores destas alterações é que o ensino se deve aproximar cada vez mais da preparação do estudante para o mundo do trabalho (o chamado mundo das realidades), libertando-o das disciplinas que representam o que aparentemente é inútil (as disciplinas de humanidades) e, portanto, pode e deve ser suprimido sem perdas imediatas. Os perigos são evidentes, e cito Jacques Derrida através do texto já referido de António Guerreiro: “simplificação acelerada, manipulação, homogeneização, submissão da investigação a cálculos de rentabilidade imediata, marketing intelectual, destruição da cultura literária”.
Em Portugal, como as coisas ainda hoje continuam a chegar com muito atraso, está agora a tentar implantar-se uma tendência que em muitos outros países, como a França, a Itália, a Alemanha, se detectou há muito que deve ser corrigida. Tendência essa que, como refere Manuel Gusmão, parte do principio redutor e obsceno de que o ensino da literatura “só atrapalha o ensino da língua”.
Ora, ao contrário, é o ensino da língua materna, se desligado desse modo de usar a língua que representa a experiência literária, dos próprios usos e costumes de uma língua que nela vai retendo a experiência e a história de um povo, que sairá enormemente empobrecido.
Em toda a Europa (pelo menos) cada vez mais se caminha para que o ensino da literatura (e da história da literatura enquanto parte da história das ideias) se relacione de perto com o ensino da língua. Isto porque a faculdade de simbolizar se encontra na origem de todo o pensamento, da faculdade de conceptualizar. O pensamento, também referia Benveniste, não é outra coisa que o poder de construir representações e de operar sobre elas.
Atrasar esta faculdade para um grau de ensino superior ao Secundário, privar o estudante da aquisição de um pensamento crítico, do desenvolvimento das suas capacidades criadoras é, como bem refere Manuel Gusmão, limitar “de forma injusta as possibilidades de encontro com a literatura, por parte daqueles que provavelmente só na escola a poderão encontrar”.
Esperemos que alguém no Ministério da Educação esteja em condições de reflectir sobre isto. Submersos pelo linguarejar simplificado das mensagens telefónicas escritas, dos computadores, dos jogos electrónicos, da locução nas rádios e nas televisões, da escrita apressada dos jornais e revistas de socialites, dos discursos dos políticos sem cultura literária, da má literatura, estaremos certamente a criar uma geração ainda mais tatibitate que aquela com a qual hoje convivemos.