quinta-feira, julho 17, 2003

 
064 - AUTORES, 5

Hoje, parece que o contador de visitas decidiu também entrar de férias.
Tentarei fazer como ele. Virei aqui de vez em quando, para não "perder o pé". Ou "a mão".

Depois dos breves textos sobre José Cardoso Pires, Vergílio Ferreira, José Gomes Ferreira, Abelaira, arquivo agora um texto sobre António Lobo Antunes, publicado no DNA de 15.02.2003.
Não são textos analíticos ou de comentário das suas obras, isso cabe à critica fazê-lo. São textos memorialistas (que os criticos não podem evidentemente escrever). São textos de um editor, alguém que escolheu trabalhar com eles e faz da divulgação das suas obras, com prazer, uma parte importante da sua vida.

António Lobo Antunes

a única forma de abordar os romances que escrevo é apanhá-los do mesmo modo que se apanha uma doença.”
in Segundo Livro de Crónicas

Nunca nos tínhamos encontrado antes. Mas foi por volta do final de 1982 que o António entrou pela primeira vez no meu gabinete de trabalho, ainda na pequena vivenda da rua Luciano Cordeiro:
- Chamo-me António e gostava de publicar nesta editora...
disse ele apertando-me a mão com força ao mesmo tempo que fazia aquele sorriso educado, de menino envergonhado, em que quase só se lhe vê os olhos.
Sentámo-nos a conversar nos mesmos maples de couro envelhecido, onde antes namoravam Snu e Sá Carneiro, herança que eu conservo com o maior cuidado e emoção.
Nessa altura ele era já um escritor famoso, tinha publicado os seus quatro primeiros romances, iniciava a sua carreira internacional com a tradução de Os Cus de Judas na Random House, tinha um Agente importante nos Estados Unidos, a comunicação social apresentava-o como um dos mais interessantes e promissores escritores da sua geração, os seus livros atingiam índices de leitura invulgares para a época, reeditando-se em sucessão.
António cultivava simultaneamente um perfil de austeridade e de irreverência. Ao mesmo tempo que ia dizendo aos funcionários da editora para não o tratarem pelos seus apelidos ou por “senhor doutor”,
- ...chamo-me António...
completava de imediato
- Lobo Antunes há muitos... eu sou o António...
para logo comentar, olhando as fotos fixadas na parede da minha sala de trabalho:
- ...mas esta gente são todos escritores?
Depois das primeiras conversas, algo monossilábicas, havia então que acertar um contrato para a publicação dos seus livros futuros. Incomodado com o comportamento da sua anterior editora, António quis que tudo fosse feito com advogados, profissionalmente, tratava-se de definir e proteger o seu trabalho. Escolheu o apoio do Miguel Sousa Tavares com quem tivemos várias sessões de trabalho, negociações que não foram simples, queria que tudo ficasse claro à partida para que não viéssemos a perturbar a nossa relação, no futuro, discutindo questões contratuais.
Já não me lembro quando começámos a considerar-nos amigos, mas sei que foi rápido e fulminante. Iniciámos o trabalho publicando e lançando simultaneamente os seus quatro romances iniciais, que ainda hoje considero como fazendo parte de um ciclo muito bem definido da sua obra, e preparámo-nos para lançar quase de seguida esse romance extraordinário que é o Fado Alexandrino, título que o António recebeu oferecido do Dinis Machado que, por essa altura, estivera uma temporada alojado na sua casa de Alcoitão.
Eu passava muitos fins-de-semana em Albarraque, numa casa emprestada pelo José Gomes Ferreira, e dada a proximidade entre as duas casas o nosso convívio estreitou-se rapidamente em longas tardes e noites de conversa.
Foi assim que tudo começou. Publicámos desde essa altura um novo romance com um intervalo médio de dois anos. Já lá vão onze, depois desses quatro primeiros, para além de dois livros de crónicas.
- Publicámos...
dizia ele, referindo-se ao nosso trabalho, sempre no plural.
- Temos tido boas críticas... esgotámos rapidamente esta edição... tivemos este prémio... vamos ser traduzidos na Alemanha... temos mais algum livro para reeditar?... parece que as pessoas gostaram desta redacção...
Como se quisesse repartir comigo uma parte do trabalho que evidentemente só ele realizava.
Com a edição dos seus livros aprendi a inverter a importância gráfica, na capa das edições, entre o nome do autor e o título do livro. Até aí era usual os editores atribuírem importância predominante ao título do livro: dizia-se A Selva, Domingo à Tarde, Aparição, A Sibila, O Delfim. Depois disso passaram a ser as Obras de..., inversão que ainda hoje permanece como moda.
Em seguida iniciou-se o período a que chamo das nossas itinerâncias e vagabundagens. As idas regulares à Feira do Livro do Porto, continuando o António a dar autógrafos, pela noite dentro, já com a Feira encerrada e as luzes apagadas, as idas a Coimbra, Braga, Galiza (convidados pelo Victor Freixanes e pelo Manuel Bragado das edições Xerais), os encontros em Frankfurt, Paris (os jantares em casa do editor Christian Bourgois), Madrid (com a equipa da Siruella e o seu editor Jacobo Stuart), Barcelona, etc. Ainda hoje destacamos, sempre que falamos disso, uma prolongada viagem pelas Universidades da Galiza, na companhia de José Cardoso Pires, conduzidos pelo inenarrável Manolo Batán das Ediciones Xerais, a quem chamávamos Walter Mathau tão evidentes eram as semelhanças e tiques de comportamento, conversando, sempre contando histórias, divertindo-nos, falando sério quando era preciso.
Mas apesar da boa disposição e da amizade, o António “não brinca em serviço”, o seu trabalho é um trabalho sério, a literatura é a coisa mais importante da sua vida. Creio não conhecer ninguém que, como ele, chegue a trabalhar, seguidas, mais do que doze horas por dia.
Com o evoluir do seu trabalho literário e o aumento dos rendimentos dele provenientes, o António foi abandonando, deliberadamente, um a um, os seus compromissos na área da medicina, até conquistar uma situação de dedicação exclusiva à literatura. Percebeu que era isso o que tinha de fazer, percebeu cedo que era isso o que o trabalho da escrita exigia dele.
- Não se pode decidir ser escritor, de repente, de um dia para outro...por exemplo, aos 40 anos... -
dizia ele muitas vezes.
- É-se escritor, quer dizer, não se consegue fazer outra coisa senão escrever... escreve-se permanentemente, muitas horas diárias. Um romance exige concentração total. Não se pensa noutra coisa. Tem de se escrever a vida inteira...
ou ainda
- Ninguém pode escrever um romance importante antes dos 40 anos. O romance é uma arte particularmente difícil. Antes dessa idade não se tem a experiência necessária. Nem da vida nem, o que é mais importante, do trabalho da escrita. Tem de se trabalhar muito...
E assim fazia, trabalhando longas horas diárias, sem interrupção, ano após ano, preparando minuciosos esquemas para cada livro, capitulo a capitulo, que colava nas paredes, um quadrado para cada capitulo, no interior de cada quadrado o esquema do capitulo, o conjunto fazendo como que a casca de um caracol, em circulo, construído de dentro para fora. Quando começava já sabia exactamente o que ia fazer.
- Este livro terá 3 partes, cada uma com 8 capítulos... o capítulo mais extenso e difícil vai ser o terceiro da segunda parte... espero ter a primeira versão concluída dentro de oito meses.
Recordo um ano, já mais recente, em que passámos juntos as férias do Verão numa casa próximo do mar. Enquanto eu, no início da manhã, caminhava até à praia, displicente, com um livro debaixo do braço, o António ficava em casa, fechado, sozinho, escrevendo, quase não comia. Durante as duas semanas em que aí estivemos não saiu de casa uma única vez, não foi sequer olhar o mar, não mexeu no carro, não procurou ninguém. Lia e escrevia. Permanentemente.
Ao final da tarde, sentado a uma mesa à sombra do jardim, aguardava o nosso regresso. Passava-me então as folhas manuscritas, acompanhava a leitura espreitando por cima do meu ombro, medindo cuidadosamente todas as minhas reacções, lendo de imediato as minhas notas.
- Tem de se escrever a vida inteira... – dizia.