quarta-feira, julho 30, 2003
078 - AUTORES, 6
Talvez seja do calor.
Sem grande paciência para falar de coisas novas, deixo uma história antiga de José Cardoso Pires. Sobre a ética das profissões - o que em alguns casos vem mesmo a propósito (ver post anterior).
Publiquei-a no DNA do último sábado, 26.07., e aqui fica arquivada.
JOSÉ CARDOSO PIRES:
o Polícia e o Carteirista
Esta não é uma história de escritores e editores como tem sido frequente nestas crónicas, mas de um escritor confrontado com o mundo real das suas personagens.
Uma história de policias e carteiristas, mesmo ao gosto de José Cardoso Pires.
Ele gostava de a contar, por isso a repetia sempre que desafiado. E eu, confesso, de tanto a ouvir, nunca fui capaz de distinguir o que havia nela de verdadeiro ou onde se infiltrava a conhecida imaginação dos escritores.
Quem conheceu de perto José Cardoso Pires recordará por certo a sua irritação relativamente a umas quantas autoridades (Policias, GNRs, Pides, Legionários, Juízes, etc.), assim como a sua compreensão e indulgência por algumas actividades marginais (carteiristas, traficantes, vadios, etc.), sobre as quais escreveu algumas histórias geniais: o Al Capone da Conceição com escritório numa leitaria da avenida Almirante Reis, o Martins Mãos de Seda, o Lidoro da Conceição, dito o Ganso, o Dente de Ouro vampiro-almirante, e outros, que eu sei lá. O próprio Cauteleiro de “O Delfim”, que é afinal quem assume a consciência final de toda a história.
Pois um dia o Zé regressava a Lisboa, tranquilamente, depois de cumpridos os afazeres que o haviam levado até fora da cidade. O cenário não pode ser uma auto-estrada, porque nesse tempo ainda as não havia em profusão, como hoje acontece. Também não poderemos falar em grandes velocidades porque o condutor a isso se não atrevia, com a sua conhecida inabilidade para as máquinas motorizadas. Receios de assaltos na estrada também não se comparavam aos que hoje acontecem. Por isso, a meio do caminho, tranquilo, o Zé decidiu aceitar a companhia de um novo passageiro que lhe solicitava boleia na berma da estrada.
Pessoa educada (como depois se pôde confirmar), razoavelmente bem vestido, agradeceu cortesmente o transporte que lhe era oferecido e sentou-se a seu lado.
O Zé, como se sabe, gostava de companhia e de conversar. Viu imediatamente na situação uma forma de quebrar a monotonia da condução até Lisboa. E tentou “puxar” pelo homem, saber quem era, o que fazia, porque andava ali na estrada sozinho, contou-lhe algumas coisas acerca de si próprio a ver se lhe desatava a língua. Mas o homem nada, não se descosia, respondendo apenas com monossílabos. Pessoa de poucas falas, portanto, homem reservado e misterioso, terá pensado o Zé.
Do pouco que falaram, a única coisa que o escritor conseguiu perceber foi que o seu companheiro de viagem tinha pressa de chegar a Lisboa. Por isso decidiu ser amável, aceitar e respeitar o silêncio do outro, acelerando o carro o mais que lhe era possível. Não devia ter sido muita a velocidade, porque o velho NSU já não daria para muito mais e o condutor, como já referi, também não possuía grandes dotes de acelera. De qualquer modo foi o suficiente para exceder os limites permitidos e para que um polícia, escondido como é costume na berma da estrada, os mandasse parar.
- Ora que espiga… – estou mesmo a ouvir o Zé, começando a ficar irritado com a situação.
- Tudo por minha causa, o senhor faça o favor de desculpar… – dizia o companheiro, bem-educado e preocupado com o transtorno causado.
E lá pararam, o NSU cansado e ofegante.
- Os seus documentos… – pediu certamente o agente da autoridade depois da continência convencional.
Nova irritação para o Zé, já se imagina. Onde estariam o raio dos documentos do carro? No porta-luvas? À frente, escondidos dentro da bagageira? – não se esqueça que o NSU tinha o motor atrás…
Condutor e companheiro procuraram, procuraram, o Zé cada vez mais irritado, o companheiro continuando solicito, ajudando, desculpando-se sempre pelo incómodo causado.
Saíram os dois do carro, documentos finalmente encontrados, o Zé já não sabendo se havia de estar mais irritado com o polícia ou com a situação em que se viu envolvido.
- Faz favor… – disse o Zé, entregando finalmente os documentos ao polícia, como quem lhe aponta uma pistola ao peito.
O Zé odiava polícias, vinha-lhe isto, como já disse, da sua genérica aversão às autoridades. Fiscais, policiais, aduaneiras militares. Todas.
- Vou ter de o multar… o cavalheiro vinha em excesso de velocidade, está ali aquele sinal antes da curva…
Era mesmo o que eu estava à espera, deve ter pensado o Zé enquanto via o polícia puxar pelo livro das multas e iniciar, com dificuldade e lentidão, o preenchimento do papelinho, virando e revirando os documentos que, felizmente, estavam em ordem.
Foi então que, rodeando o polícia, o seu companheiro de viagem decidiu colocar-se também em seu apoio.
- O Senhor Guarda não pode fazer uma coisa destas. A minha mulher está a morrer no Hospital, este senhor fez o favor de me dar uma boleia, ia depressa por minha causa, a ver se ainda chego antes da coitada exalar o último suspiro.
Mas o polícia não se comoveu com a cantilena, agora rodeado pelos dois, cada um tentando à sua maneira demove-lo de cumprir o seu dever.
Quando de novo arrancaram, o Zé amarfanhando a multa no bolso do casaco, resmungando com a sua queda para atrair as desgraças e os problemas, o silêncio era de gelo.
Foram assim os primeiros quilómetros de reinício da viagem: um silêncio pesado, o Zé certamente arrependido da boleia dada a um gajo que nem tinha rendido conversa para um conto; o outro preocupado, sentindo-se o causador do infortúnio.
Até que, por fim, foi o outro quem decidiu falar:
- O senhor desculpe… o senhor foi tão amável… tudo isto por minha causa… tudo isto porque eu lhe disse que tinha pressa…embora eu nem seja casado… nem tenho mulher nenhuma às portas da morte…sou apenas um modesto carteirista, um profissional do gamanço…
Imagine-se o Zé, conduzindo irritado, ter de repente que pensar em que bolso estava guardada a carteira, onde é que tinha voltado a pôr os documentos do carro, o que é que estava na bagageira do carro quando a abrira, como era possível que tudo isto lhe estivesse a acontecer a ele, dar boleia a um carteirista.
- O senhor foi tão amável que eu, que sou um homem sério e agradecido, não posso deixar de o compensar à minha modesta maneira…
E levando a mão ao bolso, pousou delicadamente sobre o tablier do velho NSU o livro das multas, roubado ao polícia durante os abraços.
Não há duvida. Todas as profissões têm a sua ética...
Sem grande paciência para falar de coisas novas, deixo uma história antiga de José Cardoso Pires. Sobre a ética das profissões - o que em alguns casos vem mesmo a propósito (ver post anterior).
Publiquei-a no DNA do último sábado, 26.07., e aqui fica arquivada.
JOSÉ CARDOSO PIRES:
o Polícia e o Carteirista
Esta não é uma história de escritores e editores como tem sido frequente nestas crónicas, mas de um escritor confrontado com o mundo real das suas personagens.
Uma história de policias e carteiristas, mesmo ao gosto de José Cardoso Pires.
Ele gostava de a contar, por isso a repetia sempre que desafiado. E eu, confesso, de tanto a ouvir, nunca fui capaz de distinguir o que havia nela de verdadeiro ou onde se infiltrava a conhecida imaginação dos escritores.
Quem conheceu de perto José Cardoso Pires recordará por certo a sua irritação relativamente a umas quantas autoridades (Policias, GNRs, Pides, Legionários, Juízes, etc.), assim como a sua compreensão e indulgência por algumas actividades marginais (carteiristas, traficantes, vadios, etc.), sobre as quais escreveu algumas histórias geniais: o Al Capone da Conceição com escritório numa leitaria da avenida Almirante Reis, o Martins Mãos de Seda, o Lidoro da Conceição, dito o Ganso, o Dente de Ouro vampiro-almirante, e outros, que eu sei lá. O próprio Cauteleiro de “O Delfim”, que é afinal quem assume a consciência final de toda a história.
Pois um dia o Zé regressava a Lisboa, tranquilamente, depois de cumpridos os afazeres que o haviam levado até fora da cidade. O cenário não pode ser uma auto-estrada, porque nesse tempo ainda as não havia em profusão, como hoje acontece. Também não poderemos falar em grandes velocidades porque o condutor a isso se não atrevia, com a sua conhecida inabilidade para as máquinas motorizadas. Receios de assaltos na estrada também não se comparavam aos que hoje acontecem. Por isso, a meio do caminho, tranquilo, o Zé decidiu aceitar a companhia de um novo passageiro que lhe solicitava boleia na berma da estrada.
Pessoa educada (como depois se pôde confirmar), razoavelmente bem vestido, agradeceu cortesmente o transporte que lhe era oferecido e sentou-se a seu lado.
O Zé, como se sabe, gostava de companhia e de conversar. Viu imediatamente na situação uma forma de quebrar a monotonia da condução até Lisboa. E tentou “puxar” pelo homem, saber quem era, o que fazia, porque andava ali na estrada sozinho, contou-lhe algumas coisas acerca de si próprio a ver se lhe desatava a língua. Mas o homem nada, não se descosia, respondendo apenas com monossílabos. Pessoa de poucas falas, portanto, homem reservado e misterioso, terá pensado o Zé.
Do pouco que falaram, a única coisa que o escritor conseguiu perceber foi que o seu companheiro de viagem tinha pressa de chegar a Lisboa. Por isso decidiu ser amável, aceitar e respeitar o silêncio do outro, acelerando o carro o mais que lhe era possível. Não devia ter sido muita a velocidade, porque o velho NSU já não daria para muito mais e o condutor, como já referi, também não possuía grandes dotes de acelera. De qualquer modo foi o suficiente para exceder os limites permitidos e para que um polícia, escondido como é costume na berma da estrada, os mandasse parar.
- Ora que espiga… – estou mesmo a ouvir o Zé, começando a ficar irritado com a situação.
- Tudo por minha causa, o senhor faça o favor de desculpar… – dizia o companheiro, bem-educado e preocupado com o transtorno causado.
E lá pararam, o NSU cansado e ofegante.
- Os seus documentos… – pediu certamente o agente da autoridade depois da continência convencional.
Nova irritação para o Zé, já se imagina. Onde estariam o raio dos documentos do carro? No porta-luvas? À frente, escondidos dentro da bagageira? – não se esqueça que o NSU tinha o motor atrás…
Condutor e companheiro procuraram, procuraram, o Zé cada vez mais irritado, o companheiro continuando solicito, ajudando, desculpando-se sempre pelo incómodo causado.
Saíram os dois do carro, documentos finalmente encontrados, o Zé já não sabendo se havia de estar mais irritado com o polícia ou com a situação em que se viu envolvido.
- Faz favor… – disse o Zé, entregando finalmente os documentos ao polícia, como quem lhe aponta uma pistola ao peito.
O Zé odiava polícias, vinha-lhe isto, como já disse, da sua genérica aversão às autoridades. Fiscais, policiais, aduaneiras militares. Todas.
- Vou ter de o multar… o cavalheiro vinha em excesso de velocidade, está ali aquele sinal antes da curva…
Era mesmo o que eu estava à espera, deve ter pensado o Zé enquanto via o polícia puxar pelo livro das multas e iniciar, com dificuldade e lentidão, o preenchimento do papelinho, virando e revirando os documentos que, felizmente, estavam em ordem.
Foi então que, rodeando o polícia, o seu companheiro de viagem decidiu colocar-se também em seu apoio.
- O Senhor Guarda não pode fazer uma coisa destas. A minha mulher está a morrer no Hospital, este senhor fez o favor de me dar uma boleia, ia depressa por minha causa, a ver se ainda chego antes da coitada exalar o último suspiro.
Mas o polícia não se comoveu com a cantilena, agora rodeado pelos dois, cada um tentando à sua maneira demove-lo de cumprir o seu dever.
Quando de novo arrancaram, o Zé amarfanhando a multa no bolso do casaco, resmungando com a sua queda para atrair as desgraças e os problemas, o silêncio era de gelo.
Foram assim os primeiros quilómetros de reinício da viagem: um silêncio pesado, o Zé certamente arrependido da boleia dada a um gajo que nem tinha rendido conversa para um conto; o outro preocupado, sentindo-se o causador do infortúnio.
Até que, por fim, foi o outro quem decidiu falar:
- O senhor desculpe… o senhor foi tão amável… tudo isto por minha causa… tudo isto porque eu lhe disse que tinha pressa…embora eu nem seja casado… nem tenho mulher nenhuma às portas da morte…sou apenas um modesto carteirista, um profissional do gamanço…
Imagine-se o Zé, conduzindo irritado, ter de repente que pensar em que bolso estava guardada a carteira, onde é que tinha voltado a pôr os documentos do carro, o que é que estava na bagageira do carro quando a abrira, como era possível que tudo isto lhe estivesse a acontecer a ele, dar boleia a um carteirista.
- O senhor foi tão amável que eu, que sou um homem sério e agradecido, não posso deixar de o compensar à minha modesta maneira…
E levando a mão ao bolso, pousou delicadamente sobre o tablier do velho NSU o livro das multas, roubado ao polícia durante os abraços.
Não há duvida. Todas as profissões têm a sua ética...