quarta-feira, julho 16, 2003
063 - AUTORES, 4
Quase de partida para férias, sem paciência para responder aos disparatados comentários e mails com que me inundam a caixa de correio, regresso ao arquivo de textos sobre os Autores.
Desta vez sobre José Gomes Ferreira, publicado no DNA de 03.05.2003.
Aqui fica, para aqueles que ainda o lembram.
JOSÉ GOMES FERREIRA
Não fiques para trás, ó companheiro (...)
Às seis da tarde costumávamos descer o Chiado até ao Metro. Ele aparecia na Moraes quase sempre de surpresa, trabalhávamos o que havia para trabalhar, contávamos histórias um ou outro, conversávamos de tudo e de nada e, pelo fim da tarde, o seu braço enfiado no meu, cabelo branco ao vento, uma velha gabardina desabotoada, descíamos o Chiado a pé até ao Metro.
O Zé Gomes adorava ser reconhecido e cumprimentado nas ruas. Sorria à esquerda e à direita, alisava com a mão, vaidoso, a sua bonita cabeleira branca, enfiava o braço no meu e, muito direito, baixando levemente a cabeça, cumprimentava com elegância e educação todos os que o saudavam.
- Quem é esta? – perguntava-me em voz baixa – Você conhece?
- Ó Zé Gomes, sei lá! Não posso conhecer todas as pessoas que o cumprimentam...
- Então porque é que ela nos cumprimentou?
- Ora essa... porque conhece os seus livros, certamente, porque o viu na televisão...
Ele ficava vaidoso e embevecido. Via-se que sorria para dentro.
Embora procurasse gerir a situação com um certo distanciamento adorava este ritual de ser reconhecido e cumprimentado nas ruas. Sentia-se de facto como um poeta do povo. E gostava que “o povo” lhe reconhecesse isso.
- Há dias um pai atirou-me a criança para o colo e pediu-me para tirar uma fotografia com ela... Já pareço o Gomes Leal...
Eram os leitores anónimos, pessoas de todas as idades, homens ou mulheres, simples conhecidos de quem seria impossível recordar-se.
A sua poesia era cantada nas ruas e na rádio, nos comícios políticos, em espectáculos, a sua imagem aparecia frequentemente na televisão, nos jornais, em cartazes, todos o conheciam, todos sabiam de cor muitos dos seus poemas. Os seus livros, a ficção, as crónicas, a poesia, atingiam tiragens e vendas impensáveis. Estávamos na segunda metade da década de setenta. Todos sabiam quem era. Todos o respeitavam. Todos sabiam de cor os seus poemas.
Confesso que não voltei a encontrar até hoje, entre os muitos escritores com quem tenho trabalhado, um fenómeno de adesão popular tão impressionante. O Zé Gomes era um símbolo, o Presidente da Associação Portuguesa de Escritores, o poeta do povo, o “poeta militante”, como ele gostava de se chamar a si próprio.
Como pudemos esquecê-lo? Porque deixámos de o ler? – por que, para um escritor, ser esquecido é termos deixado de o ler. Mas a verdade é que fomos deixando de o ler. Lentamente, como o bicho corroendo a madeira, distraídos e desatentos, deixando que a poeira do tempo fosse pousando sobre a sua obra. “A borracha implacável do Grande Livro da Glória – há-de chegar um dia a minha vez, vai ver...” – costumava ele dizer.
Talvez alguns continuem a rever na televisão a Aldeia da Roupa Branca ignorando que é dele o texto do filme, que são dele as letras de muitas canções musicadas por Lopes Graça, as legendas de muito filmes da época em tradução assinada por Álvaro Gomes. Os seus livros. Sobretudo os seus livros, que hoje desapareceram das escolas (como aconteceu, aliás, com tanta outra literatura contemporânea), onde os jovens aprendiam a ler "As Aventuras de João Sem Medo" e a recitar e a interpretar os seus poemas.
Nascido em 1900, José Gomes Ferreira atravessou o século vinte como uma nuvem, como o zepelim prateado que começou a voar no dia em que ele abriu os olhos. “Sou do tamanho do século, assisti a tudo ou quase tudo...”. À morte do Rei, ao começo da Republica, duas guerras, à carnificina e à barbárie nazi, aos campos de concentração, à primeira e infame experiência atómica, ao inicio das ditaduras, ao silêncio que nos impuseram, às madrugadas de luz e ao anoitecer das esperanças.
Espanto-me – escreveu ele – do que afinal sempre espantou os poetas de todos os séculos. De haver ao mesmo tempo injustiças e estrelas...
Comemorou-se no ano 2000 o centenário do seu nascimento. Apesar dos esforços e do empenho dos seus filhos Raul José e Alexandre e de uns quantos amigos, a verdade é que tudo o que foi feito ficou aquém do que ele merecia, da ternura e do envolvimento popular visível nessas tardes em que descíamos o Chiado, juntos, de braço dado, até ao Metro.
Quando finalmente nos despedíamos, no Rossio, junto às escadas do Metro, havia ainda outra cena que se repetia.
- Onde terá posto a Rosalia a nota de 20 escudos que me deu antes de sair de casa?
e revolvia os bolsos, envergonhado, até a encontrar, dobrada em quatro, envelhecida, no bolso do casaco.
Zé Gomes não usava dinheiro, nem chaves, nem tabaco, suponho que nem relógio. Perderia tudo; ou não necessitava de nenhum desses objectos. Por isso Rosalia lhe entregava apenas aquela nota de 20 escudos cuidadosamente dobrada em quatro mas que ele tinha sempre dificuldade em encontrar. Dos seus bolsos, nesses momentos, saíam apenas poemas manuscritos, rabiscados e emendados nos mais inacreditáveis pedaços de papel.
Como quando me aparecia na editora para entregar as provas de um livro depois de revistas por si. Emendas sobre emendas, rasuras sobre rasuras, riscos a toda a largura da página, folhas rasgadas, palavras ininteligíveis.
- Ó Zé Gomes, como é que eu posso agora enviar isto para a Gráfica... – ralhava-lhe eu, tentando ser convencional.
- Você desculpe, mas eu fui revendo as provas enquanto passeava de eléctrico pela cidade... – dizia-me ele, baixando os olhos, como um menino apanhado numa falta grave –... e aquilo treme que se farta... Faça-me lá o favor de voltar a ver tudo outra vez com os seus olhos mágicos.
Para as gralhas, claro.
Quando faleceu, em Fevereiro de 1985 (vai fazer em breve 20 anos...), no dia em que, do outro lado da cidade, também faleceu o escritor Nuno Bragança, Lisboa colocou-se inteira aos seus pés.
Morreu o poeta...
Pela pequena sala da Casa da Imprensa, apesar da chuva que caía, passou inteira uma multidão. O Largo de Camões encheu como num dia de manifestação.
Como pudemos esquecê-lo assim, tão depressa?
Como permitimos que se esqueçam tão breve aqueles que afinal moldaram de sonhos a nossa vida?
Se eu pudesse iluminar por dentro as palavras de todos os dias (...)
Desta vez sobre José Gomes Ferreira, publicado no DNA de 03.05.2003.
Aqui fica, para aqueles que ainda o lembram.
JOSÉ GOMES FERREIRA
Não fiques para trás, ó companheiro (...)
Às seis da tarde costumávamos descer o Chiado até ao Metro. Ele aparecia na Moraes quase sempre de surpresa, trabalhávamos o que havia para trabalhar, contávamos histórias um ou outro, conversávamos de tudo e de nada e, pelo fim da tarde, o seu braço enfiado no meu, cabelo branco ao vento, uma velha gabardina desabotoada, descíamos o Chiado a pé até ao Metro.
O Zé Gomes adorava ser reconhecido e cumprimentado nas ruas. Sorria à esquerda e à direita, alisava com a mão, vaidoso, a sua bonita cabeleira branca, enfiava o braço no meu e, muito direito, baixando levemente a cabeça, cumprimentava com elegância e educação todos os que o saudavam.
- Quem é esta? – perguntava-me em voz baixa – Você conhece?
- Ó Zé Gomes, sei lá! Não posso conhecer todas as pessoas que o cumprimentam...
- Então porque é que ela nos cumprimentou?
- Ora essa... porque conhece os seus livros, certamente, porque o viu na televisão...
Ele ficava vaidoso e embevecido. Via-se que sorria para dentro.
Embora procurasse gerir a situação com um certo distanciamento adorava este ritual de ser reconhecido e cumprimentado nas ruas. Sentia-se de facto como um poeta do povo. E gostava que “o povo” lhe reconhecesse isso.
- Há dias um pai atirou-me a criança para o colo e pediu-me para tirar uma fotografia com ela... Já pareço o Gomes Leal...
Eram os leitores anónimos, pessoas de todas as idades, homens ou mulheres, simples conhecidos de quem seria impossível recordar-se.
A sua poesia era cantada nas ruas e na rádio, nos comícios políticos, em espectáculos, a sua imagem aparecia frequentemente na televisão, nos jornais, em cartazes, todos o conheciam, todos sabiam de cor muitos dos seus poemas. Os seus livros, a ficção, as crónicas, a poesia, atingiam tiragens e vendas impensáveis. Estávamos na segunda metade da década de setenta. Todos sabiam quem era. Todos o respeitavam. Todos sabiam de cor os seus poemas.
Confesso que não voltei a encontrar até hoje, entre os muitos escritores com quem tenho trabalhado, um fenómeno de adesão popular tão impressionante. O Zé Gomes era um símbolo, o Presidente da Associação Portuguesa de Escritores, o poeta do povo, o “poeta militante”, como ele gostava de se chamar a si próprio.
Como pudemos esquecê-lo? Porque deixámos de o ler? – por que, para um escritor, ser esquecido é termos deixado de o ler. Mas a verdade é que fomos deixando de o ler. Lentamente, como o bicho corroendo a madeira, distraídos e desatentos, deixando que a poeira do tempo fosse pousando sobre a sua obra. “A borracha implacável do Grande Livro da Glória – há-de chegar um dia a minha vez, vai ver...” – costumava ele dizer.
Talvez alguns continuem a rever na televisão a Aldeia da Roupa Branca ignorando que é dele o texto do filme, que são dele as letras de muitas canções musicadas por Lopes Graça, as legendas de muito filmes da época em tradução assinada por Álvaro Gomes. Os seus livros. Sobretudo os seus livros, que hoje desapareceram das escolas (como aconteceu, aliás, com tanta outra literatura contemporânea), onde os jovens aprendiam a ler "As Aventuras de João Sem Medo" e a recitar e a interpretar os seus poemas.
Nascido em 1900, José Gomes Ferreira atravessou o século vinte como uma nuvem, como o zepelim prateado que começou a voar no dia em que ele abriu os olhos. “Sou do tamanho do século, assisti a tudo ou quase tudo...”. À morte do Rei, ao começo da Republica, duas guerras, à carnificina e à barbárie nazi, aos campos de concentração, à primeira e infame experiência atómica, ao inicio das ditaduras, ao silêncio que nos impuseram, às madrugadas de luz e ao anoitecer das esperanças.
Espanto-me – escreveu ele – do que afinal sempre espantou os poetas de todos os séculos. De haver ao mesmo tempo injustiças e estrelas...
Comemorou-se no ano 2000 o centenário do seu nascimento. Apesar dos esforços e do empenho dos seus filhos Raul José e Alexandre e de uns quantos amigos, a verdade é que tudo o que foi feito ficou aquém do que ele merecia, da ternura e do envolvimento popular visível nessas tardes em que descíamos o Chiado, juntos, de braço dado, até ao Metro.
Quando finalmente nos despedíamos, no Rossio, junto às escadas do Metro, havia ainda outra cena que se repetia.
- Onde terá posto a Rosalia a nota de 20 escudos que me deu antes de sair de casa?
e revolvia os bolsos, envergonhado, até a encontrar, dobrada em quatro, envelhecida, no bolso do casaco.
Zé Gomes não usava dinheiro, nem chaves, nem tabaco, suponho que nem relógio. Perderia tudo; ou não necessitava de nenhum desses objectos. Por isso Rosalia lhe entregava apenas aquela nota de 20 escudos cuidadosamente dobrada em quatro mas que ele tinha sempre dificuldade em encontrar. Dos seus bolsos, nesses momentos, saíam apenas poemas manuscritos, rabiscados e emendados nos mais inacreditáveis pedaços de papel.
Como quando me aparecia na editora para entregar as provas de um livro depois de revistas por si. Emendas sobre emendas, rasuras sobre rasuras, riscos a toda a largura da página, folhas rasgadas, palavras ininteligíveis.
- Ó Zé Gomes, como é que eu posso agora enviar isto para a Gráfica... – ralhava-lhe eu, tentando ser convencional.
- Você desculpe, mas eu fui revendo as provas enquanto passeava de eléctrico pela cidade... – dizia-me ele, baixando os olhos, como um menino apanhado numa falta grave –... e aquilo treme que se farta... Faça-me lá o favor de voltar a ver tudo outra vez com os seus olhos mágicos.
Para as gralhas, claro.
Quando faleceu, em Fevereiro de 1985 (vai fazer em breve 20 anos...), no dia em que, do outro lado da cidade, também faleceu o escritor Nuno Bragança, Lisboa colocou-se inteira aos seus pés.
Morreu o poeta...
Pela pequena sala da Casa da Imprensa, apesar da chuva que caía, passou inteira uma multidão. O Largo de Camões encheu como num dia de manifestação.
Como pudemos esquecê-lo assim, tão depressa?
Como permitimos que se esqueçam tão breve aqueles que afinal moldaram de sonhos a nossa vida?
Se eu pudesse iluminar por dentro as palavras de todos os dias (...)
Comments:
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Há quem ajude a lembrar desta forma terna, comovente.
Os poetas, normalmente, são palavras, aqui o poeta é humano.
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Os poetas, normalmente, são palavras, aqui o poeta é humano.
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