sexta-feira, outubro 08, 2004
159 - Entrevista à revista "Magazine Artes"
Transcrevo o texto de uma entrevista concedida à revista "Magazine Artes", nº 22, Outubro de 2004.
As perguntas foram do Carlos Pinto Coelho.
1. A edição do livro faz-se, actualmente, com uma abundância de produção que excede a procura. Vale a pena continuar a afrontar essa evidência com a quantidade de títulos que saem por ano em Portugal ?
R. Não sei como responder... Sou de uma geração que ama os livros, que aprendeu tudo, ou quase tudo, com os livros. Às vezes até a vida, nós aprendíamos nos livros - impossibilitados que estávamos, por esses tempos, de a viver na realidade.
Falar em abundância, quando se fala de livros, num país que não lê muito, choca-me um pouco, confesso.
Mas sou obrigado a reconhecer que é verdade, que se produzem muitos livros, que se produzem muitos livros que ninguém lê, em quantidades que são excessivas relativamente à sua procura, que os elevados stocks imobilizados são hoje o grande sufoco das editoras, com os elevados custos da sua armazenagem, do seu manuseamento, da sua movimentação sob a forma de escassas unidades, do seu ir e voltar das Livrarias, etc., etc.
Por outro lado faltam-nos muitos livros... livros que fazem parte do nosso património cultural, que não existem, que deveriam estar disponíveis, que deveriam estar a ser recomendados para leitura, que deveriam ser permanentemente re-lidos.
E há ainda o lixo... que de há uns anos para cá invadiu também o nosso mercado, como em todos os outros mercados. Os livros que se fazem em grandes quantidades, que se vendem em grandes quantidades, promovidos largamente por uma certa comunicação social, a maior parte das vezes autênticas agressões aos padrões mínimos da qualidade, estropiando a língua, o pensamento, o nosso bom-gosto (não estou a referir-me, evidentemente, à chamada literatura light ou pop ou outra coisa qualquer, refiro-me ao lixo, verdadeiramente ao lixo...).
Depois, claro, há então os bons livros, os bons autores, as obras de referência fundamentais, aquelas que para circularem e viverem necessitam de todo o restante enquadramento que referi. Mesmo o do lixo...
Estamos a falar de uma indústria, queremos cada vez mais falar do livro como de uma indústria, tal como os homens de cinema desejariam poder fazer relativamente à sua actividade. Quanto mais filmes, melhores filmes; quanto mais livros, maior capacidade de selecção das leituras. Uma indústria, na era moderna, produz sempre lixos. É inevitável. Há sempre no ar uma poeira... havemos de aprender a seleccioná-la, cada vez com mais destreza.
2. A leitura de livros impressos sempre foi uma prática de minorias. A globalização das tecnologias de distribuição da leitura vai fazer emagrecer ainda mais essas minorias?
R. Não creio, pelo que disse antes.
Não devemos ter medo que o livro se torne uma industria.
Não gosto da globalização, mas não vejo outro remédio senão ter de aprender a viver com ela. Ela tornou o livro um produto menos sagrado, mais acessível, mais fácil de tocar onde quer que esteja, na livraria, no hipermercado, nos grandes espaços, nos quiosques ao lado dos jornais e das revistas, nas bibliotecas de leitura pública, quem dera que nas escolas um pouco mais do que actualmente.
Sou dos que pensam, repito, que quanto mais se ler (mesmo o lixo) mais se aprende, maior é a nossa capacidade de seleccionar as novas leituras. Suponho que foi isso o que aconteceu connosco, aqueles que hoje tanto amam e defendem os livros e a leitura. Quando jovem, eu lia tudo o que me punham à frente, ou até o que me escondiam... foi isso que apurou o meu gosto actual, aquilo que eu posso chamar o meu gosto actual.
3. As cópias clandestinas nas escolas devem ser encaradas como um prejuízo comercial e um atentado legal, mas também como um investimento em hábitos de leitura?
R. Nisso sou um pouco radical. Não vejo nas cópias clandestinas qualquer espécie de investimento. Vejo nelas um roubo. Um roubo aos direitos do trabalho dos autores, dos tradutores, dos revisores, dos designers, dos editores, da industria gráfica, etc.
Aprender a conviver com os livros tem de ser também aprender a defender esta realidade. Embora produto de trabalho intelectual, incorporando factores como a criatividade, a imaginação, o pensamento, etc., o livro não é feito de fumo, não é um objecto sem valor que se possa colocar em circulação através de cópias clandestinas.
Só uma industria forte é capaz de produzir e colocar em circulação cada vez mais livros, em cada vez mais locais, cada vez mais baratos. Há que defender essa industria, há que defender e respeitar o trabalho dos criadores intelectuais.
Como é que José Cardoso Pires, por exemplo, foi capaz de ser, desde muito cedo, um escritor profissional ? Através dos direitos de autor recebidos das cópias clandestinas de O Delfim, que se faziam para circulação escolar ?
4. O que deve ser, hoje, em seu entender, um editor livreiro consciente: audaz guardador do rebanho ? prudente vendilhão do templo ?
R. Apetece-me dizer apenas: um gestor, um bom gestor, um gestor preparado ao longo dos anos, um homem feito de experiências diversas, um bom compatibilizador de realidades muito distintas, como julgo se pode entrever do que disse antes. Mas também, como diria o meu amigo e colega Carlos Araujo, um técnico altamente especializado em... ideias gerais. Um amigo leal dos seus autores, o seu primeiro leitor, um leitor treinado e exigente.
Um homem de cultura ? - já agora...
5. Confie-nos alguma memória grata da sua relação com escritores que editou. Sabemos de si e de José Cardoso Pires, de si e do primeiro "élan" literário de Inês Pedrosa. Mas há mais, certamente...
R. Cultivei desde muito cedo (falo dos finais dos sessentas, princípios dos setentas) essa estreita e exigente relação com os meus autores, desde quando não era uso cultivar-se tal coisa na edição portuguesa. Editar autores portugueses era pagar direitos em percentagens elevadas, fazer tiragens de 3 mil exemplares, demorar vários anos para os vender. Os editores não estavam para isso. Tendo ainda por cima que aturar os autores, ao final da tarde, todos os dias, a bater-lhes à porta, reclamando: o meu livro não está nas livrarias...
Eu fui dos poucos a conseguir isso: aturá-los...
A achar graça às suas histórias, a ir com eles para os copos, a ler com atenção e cuidado os seus textos, a saber ouvi-los e a respeitá-los, a levantar-me cedo se eles me queriam para o pequeno-almoço, a deitar-me tarde se eles precisavam de um passeio nocturno, a pé, para contar as dificuldades de um próximo livro, a tentar que os seus livros estivessem sempre nas livrarias, que os jornais falassem deles, que os prémios os não esquecessem, que os agentes internacionais os incluissem nas suas agendas...
Sempre acreditei que um país que se preze tem de saber olhar para o seu umbigo, tem de aprender a ler os seus autores.
Hoje, fico feliz quando eles atingem 50 mil exemplares de vendas em poucos meses, quando os prémios literários lhes são atribuídos, quando os agentes internacionais os disputam, quando os jornais os assediam.
Acho que valeu a pena.
Pois valeu...
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