segunda-feira, janeiro 05, 2004
142 - O frio... este frio.
Algumas palavras são mais que o som.
(…)
Assim me apoio às palavras,
Procuro a tudo dar um nome,
E em noites destas – salientes, defumadas,
Com vozes que nos chamam – sou um corpo
novo. Quebrando o meu silêncio,
povoo alguns espaços de alegria.
Rasgo o papel. Irado, desejoso
De saber até onde, quando, como,
O corpo vai. Nas palavras me encontro.
Cansado, quase morto, à espera,
Sempre à espera. Nas palavras vivo,
Denuncio ou ataco. Há um grande sol
À nossa espera. Quantos somos?
in “Algumas palavras” (1969)
Homenagem também a Vitor de Sá, falecido com 82 anos. Marcou a minha geração, foi depois Deputado e um exemplo de seriedade na nossa democracia.
E chega de perdas. Voltemos ao ano novo.
Quando chegaram as noites frias do Inverno e a proximidade do Natal, lembrei-me das mortes que normalmente ocorrem por esta altura do ano.
Como se os mais fracos não aguentassem, desistindo por fim, num estremecimento de frio.
Assim aconteceu.
Paradela de Abreu, uma figura contestável, um editor cheio de sentido da oportunidade, foi ele o verdadeiro editor desse livro decisivo que foi o “Portugal e o Futuro”, de Spínola; também um negociante de armas (diziam) colaborando com o ELP e outras organizações similares, um homem que acabou sozinho, depois de se ter envolvido em negócios que nunca foram muito claros.
Encontrámo-nos uma última vez, há já muitos meses, num desses “descansos” da auto-estrada Lisboa/Porto. Ele vinha de uma delegação do Instituto Piaget, em Trás-os-Montes, com quem então colaborava fazendo não entendi bem o quê. Havíamos coincidido na editora Arcádia, logo após a publicação do livro de Spínola, frequentávamos o bife do Snob, altas horas da noite. Apesar desta proximidade, nunca deixou que se soubesse muito da sua vida estranha, nem mesmo quando o álcool parecia descontrolá-lo um pouco mais.
Era um editor com imaginação e criatividade, sabia do seu ofício, aprendi com ele (em breves conversas) algumas coisas da profissão. Procurei, com cuidado, nunca me envolver no resto da sua vida. Morreu aos 70 anos, a meio dos frios de Dezembro, dia 17, suponho.
Teve a sorte de, entre outros, ser o editor de um livro que ficará como símbolo da nossa História mais recente.
Herlânder Rolo, proprietário da tipografia Rolo & Filhos, em Mafra. Foi lá, e com a sua ajuda (discreta, mas cheia de profissionalismo), que foi impresso quase clandestinamente o livro de Rui Mateus, “Memórias de um PS Desconhecido”.
Clandestinamente, sim, não é exagero, apesar de estarmos já numa fase adiantada da nossa democracia. Muita gente pretendia ler este livro antes da sua divulgação pública...
Tivemos sorte, eu e Herlânder Rolo, de saber pertencer a esse tempo em que o editor e o impressor estabeleciam entre si laços de cumplicidade, imprescindíveis ao arrojo de certas iniciativas editoriais.
Numa das noites em que decorreu a impressão deste livro, a sua Gráfica sofreu uma tentativa de assalto por parte de alguns jornalistas do semanário O Independente, alguns deles (têm-me dito) trabalhando agora no Gabinete do Ministro Paulo Portas. Assalto esse que depois se prolongou, no caminho entre Mafra e Lisboa, numa alucinante perseguição às viaturas que transportavam para a Distribuidora a 1ª edição deste livro. Trinta mil exemplares, vendidos logo no primeiro dia do seu lançamento - para fazer ruborizar alguns best-sellers de agora…
Morreu no último dia do ano quando, infelizmente, todos pensávamos noutras coisas.
Espero que os seus filhos Célia e João Paulo prossigam o seu trabalho e o seu exemplo.
Eduardo Guerra Carneiro, o poeta de “Isto Anda Tudo Ligado” (1970), o jornalista, o companheiro de tantas aventuras antigas, dos suplementos juvenis, do suplemento literário do Diário de Lisboa (agora já não se usa dizer “suplemento literário”), da revista “& etc.”, das noitadas do Monte Carlo e do Snob, dos almoços quase diários no “13”, do café, antes do almoço, na Brasileira, dos copos e conversas, noite dentro, no Bolero, ou em casas dos amigos.
Estremeci, quando a noticia me caiu em cima, ao tomar consciência da proximidade entre as nossas idades, eu que sempre o tratava como mais velho. Ele com 61, eu afinal já com estes 58.
Não tenho nada para dizer. Nem me apetece. O Eduardo decidiu terminar. Não era a primeira vez que falava disso, como quando aconteceu com o pintor Fausto Boavida. Apetece-me apenas lembrá-lo, sei que terei de lembrá-lo sempre, tantas foram as coisas que vivemos juntos. Lembras-te também, Victor? Claro, tu não podes responder. Não escreves certamente nenhum blogue… Imagino que nem uses um computador…
Fica aqui este poema. Datado? Não o são todas as palavras?
Como se os mais fracos não aguentassem, desistindo por fim, num estremecimento de frio.
Assim aconteceu.
Paradela de Abreu, uma figura contestável, um editor cheio de sentido da oportunidade, foi ele o verdadeiro editor desse livro decisivo que foi o “Portugal e o Futuro”, de Spínola; também um negociante de armas (diziam) colaborando com o ELP e outras organizações similares, um homem que acabou sozinho, depois de se ter envolvido em negócios que nunca foram muito claros.
Encontrámo-nos uma última vez, há já muitos meses, num desses “descansos” da auto-estrada Lisboa/Porto. Ele vinha de uma delegação do Instituto Piaget, em Trás-os-Montes, com quem então colaborava fazendo não entendi bem o quê. Havíamos coincidido na editora Arcádia, logo após a publicação do livro de Spínola, frequentávamos o bife do Snob, altas horas da noite. Apesar desta proximidade, nunca deixou que se soubesse muito da sua vida estranha, nem mesmo quando o álcool parecia descontrolá-lo um pouco mais.
Era um editor com imaginação e criatividade, sabia do seu ofício, aprendi com ele (em breves conversas) algumas coisas da profissão. Procurei, com cuidado, nunca me envolver no resto da sua vida. Morreu aos 70 anos, a meio dos frios de Dezembro, dia 17, suponho.
Teve a sorte de, entre outros, ser o editor de um livro que ficará como símbolo da nossa História mais recente.
Herlânder Rolo, proprietário da tipografia Rolo & Filhos, em Mafra. Foi lá, e com a sua ajuda (discreta, mas cheia de profissionalismo), que foi impresso quase clandestinamente o livro de Rui Mateus, “Memórias de um PS Desconhecido”.
Clandestinamente, sim, não é exagero, apesar de estarmos já numa fase adiantada da nossa democracia. Muita gente pretendia ler este livro antes da sua divulgação pública...
Tivemos sorte, eu e Herlânder Rolo, de saber pertencer a esse tempo em que o editor e o impressor estabeleciam entre si laços de cumplicidade, imprescindíveis ao arrojo de certas iniciativas editoriais.
Numa das noites em que decorreu a impressão deste livro, a sua Gráfica sofreu uma tentativa de assalto por parte de alguns jornalistas do semanário O Independente, alguns deles (têm-me dito) trabalhando agora no Gabinete do Ministro Paulo Portas. Assalto esse que depois se prolongou, no caminho entre Mafra e Lisboa, numa alucinante perseguição às viaturas que transportavam para a Distribuidora a 1ª edição deste livro. Trinta mil exemplares, vendidos logo no primeiro dia do seu lançamento - para fazer ruborizar alguns best-sellers de agora…
Morreu no último dia do ano quando, infelizmente, todos pensávamos noutras coisas.
Espero que os seus filhos Célia e João Paulo prossigam o seu trabalho e o seu exemplo.
Eduardo Guerra Carneiro, o poeta de “Isto Anda Tudo Ligado” (1970), o jornalista, o companheiro de tantas aventuras antigas, dos suplementos juvenis, do suplemento literário do Diário de Lisboa (agora já não se usa dizer “suplemento literário”), da revista “& etc.”, das noitadas do Monte Carlo e do Snob, dos almoços quase diários no “13”, do café, antes do almoço, na Brasileira, dos copos e conversas, noite dentro, no Bolero, ou em casas dos amigos.
Estremeci, quando a noticia me caiu em cima, ao tomar consciência da proximidade entre as nossas idades, eu que sempre o tratava como mais velho. Ele com 61, eu afinal já com estes 58.
Não tenho nada para dizer. Nem me apetece. O Eduardo decidiu terminar. Não era a primeira vez que falava disso, como quando aconteceu com o pintor Fausto Boavida. Apetece-me apenas lembrá-lo, sei que terei de lembrá-lo sempre, tantas foram as coisas que vivemos juntos. Lembras-te também, Victor? Claro, tu não podes responder. Não escreves certamente nenhum blogue… Imagino que nem uses um computador…
Fica aqui este poema. Datado? Não o são todas as palavras?
Algumas palavras são mais que o som.
(…)
Assim me apoio às palavras,
Procuro a tudo dar um nome,
E em noites destas – salientes, defumadas,
Com vozes que nos chamam – sou um corpo
novo. Quebrando o meu silêncio,
povoo alguns espaços de alegria.
Rasgo o papel. Irado, desejoso
De saber até onde, quando, como,
O corpo vai. Nas palavras me encontro.
Cansado, quase morto, à espera,
Sempre à espera. Nas palavras vivo,
Denuncio ou ataco. Há um grande sol
À nossa espera. Quantos somos?
in “Algumas palavras” (1969)
Homenagem também a Vitor de Sá, falecido com 82 anos. Marcou a minha geração, foi depois Deputado e um exemplo de seriedade na nossa democracia.
E chega de perdas. Voltemos ao ano novo.