sexta-feira, dezembro 26, 2003
141 - BORGES: estou destinado a perder-me…
Obrigado a todos os que entenderam saudar o que chamaram “o meu regresso”.
O pior é eu próprio não saber se regressei… ou se apenas (brevemente) passei por aqui de novo...
Transcrevo do Aviz e do Francisco José Viegas, para que se entenda melhor o que quero dizer:
“Há semanas, dias, alturas em que o silêncio é a única resposta a um mundo que anda muito tagarela — mas a culpa não é do mundo, não. Não dou voz a tamanha arrogância; o mundo é como é, e como já há muito se sabia. De resto, o Aviz tem esta característica lamentável e não-periódica: de vez em quando, cala-se. Não é por mal. Só que não há muito a dizer (…)”
O mesmo acontece por aqui.
De vez em quando, face à tagalerice que nos rodeia, um pouco de silêncio e de recolhimento.
Quem é que dizia que um pouco de silêncio é necessário, de vez em quando? Demonstra a consciência do que se diz, do que se quer dizer.
Retribuo as saudações (sempre boas de receber), deixando-vos um texto de JL Borges, numa tradução de Ruy Belo.
Deste mesmo texto existe outra tradução, também de outro poeta (Fernando Pinto do Amaral), incluída no vol. II das Obras Completas de Jorge Luís Borges, editadas pela Teorema (1998).
Borges está bem em qualquer das versões.
BORGES Y YO
É ao outro, a Borges, que acontecem as coisas. Eu caminho por Buenos Aires e demoro-me, talvez já mecanicamente, a olhar o arco de um alpendre e o guarda-vento; de Borges tenho notícias pelo correio e vejo o seu nome num grupo de professores ou num dicionário biográfico. Gosto dos relógios de areia, dos mapas, da tipografia do século XVIII, do sabor do café e da prosa de Stevenson; o outro compartilha dessas preferências, mas de um modo vaidoso, que as converte em atributos de um actor. Seria exagerado afirmar que as nossas relações são hostis; eu vivo, eu deixo-me viver, para que Borges possa tecer a sua literatura e essa literatura justifica-me. Nada me custa confessar que conseguiu certas páginas válidas, mas essas páginas não me podem salvar, talvez porque o que é bom já não é de ninguém, nem sequer do outro, mas sim da linguagem ou da tradição. Além do mais, eu estou destinado a perder-me, definitivamente, e apenas algum instante meu poderá sobreviver no outro. A pouco e pouco vou cedendo-lhe tudo, embora não desconheça o seu perverso costume de falsear e de magnificar. Spinoza entendeu que todas as coisas querem perseverar no seu ser; a pedra quer eternamente ser pedra e o tigre um tigre. Eu hei-de ficar em Borges, não em mim (se é que sou alguém), mas reconheço-me menos nos seus livros que em muitos outros ou que no laborioso zangarreio de uma viola. Há anos procurei libertar-me dele e passei das mitologias do arrabalde aos jogos com o tempo e com o infinito, mas esses jogos são agora de Borges e terei de idealizar outras coisas. Assim, a minha vida é uma fuga e perco tudo e tudo é do esquecimento ou do outro.
Não sei qual dos dois escreve esta página.
(in Jorge Luís Borges, Poemas Escolhidos, Pub. Dom Quixote, 1971 e 2003, ed. bilingue)
O pior é eu próprio não saber se regressei… ou se apenas (brevemente) passei por aqui de novo...
Transcrevo do Aviz e do Francisco José Viegas, para que se entenda melhor o que quero dizer:
“Há semanas, dias, alturas em que o silêncio é a única resposta a um mundo que anda muito tagarela — mas a culpa não é do mundo, não. Não dou voz a tamanha arrogância; o mundo é como é, e como já há muito se sabia. De resto, o Aviz tem esta característica lamentável e não-periódica: de vez em quando, cala-se. Não é por mal. Só que não há muito a dizer (…)”
O mesmo acontece por aqui.
De vez em quando, face à tagalerice que nos rodeia, um pouco de silêncio e de recolhimento.
Quem é que dizia que um pouco de silêncio é necessário, de vez em quando? Demonstra a consciência do que se diz, do que se quer dizer.
Retribuo as saudações (sempre boas de receber), deixando-vos um texto de JL Borges, numa tradução de Ruy Belo.
Deste mesmo texto existe outra tradução, também de outro poeta (Fernando Pinto do Amaral), incluída no vol. II das Obras Completas de Jorge Luís Borges, editadas pela Teorema (1998).
Borges está bem em qualquer das versões.
BORGES Y YO
É ao outro, a Borges, que acontecem as coisas. Eu caminho por Buenos Aires e demoro-me, talvez já mecanicamente, a olhar o arco de um alpendre e o guarda-vento; de Borges tenho notícias pelo correio e vejo o seu nome num grupo de professores ou num dicionário biográfico. Gosto dos relógios de areia, dos mapas, da tipografia do século XVIII, do sabor do café e da prosa de Stevenson; o outro compartilha dessas preferências, mas de um modo vaidoso, que as converte em atributos de um actor. Seria exagerado afirmar que as nossas relações são hostis; eu vivo, eu deixo-me viver, para que Borges possa tecer a sua literatura e essa literatura justifica-me. Nada me custa confessar que conseguiu certas páginas válidas, mas essas páginas não me podem salvar, talvez porque o que é bom já não é de ninguém, nem sequer do outro, mas sim da linguagem ou da tradição. Além do mais, eu estou destinado a perder-me, definitivamente, e apenas algum instante meu poderá sobreviver no outro. A pouco e pouco vou cedendo-lhe tudo, embora não desconheça o seu perverso costume de falsear e de magnificar. Spinoza entendeu que todas as coisas querem perseverar no seu ser; a pedra quer eternamente ser pedra e o tigre um tigre. Eu hei-de ficar em Borges, não em mim (se é que sou alguém), mas reconheço-me menos nos seus livros que em muitos outros ou que no laborioso zangarreio de uma viola. Há anos procurei libertar-me dele e passei das mitologias do arrabalde aos jogos com o tempo e com o infinito, mas esses jogos são agora de Borges e terei de idealizar outras coisas. Assim, a minha vida é uma fuga e perco tudo e tudo é do esquecimento ou do outro.
Não sei qual dos dois escreve esta página.
(in Jorge Luís Borges, Poemas Escolhidos, Pub. Dom Quixote, 1971 e 2003, ed. bilingue)