sexta-feira, dezembro 26, 2003

 

140 - Giulio Einaudi


Giulio Einaudi


Editar um livro é uma tarefa tão louca como escrevê-lo.
Ernst Rowohlt

Os editores têm todos as suas manias e deles se contam inúmeras histórias. De Giulio Einaudi, provavelmente um dos editores italianos mais influentes na segunda metade do século XX, costuma referir-se a sua aversão a que se falasse do público (dos leitores) nos seus famosos conselhos de leitura. Famosos porque deles chegaram a fazer parte escritores como Cesare Pavese, Elio Vittorini, Ítalo Calvino, Primo Levi, etc.
Os conselhos de leitura estão para os editores como os conselhos de ministros estarão para os primeiros-ministros: são as reuniões periódicas dos seus muitos consultores especializados, dos seus “leitores” de confiança, dos seus directores de colecções, às vezes também de alguns autores e dos inevitáveis técnicos de marketing e comerciais. Tal como os primeiros-ministros os editores têm por missão ouvir atentamente os seus conselhos fazendo em seguida o que lhes sugere a sua intuição e experiência.
Entre os editores e as suas equipas comerciais há um desacerto histórico e constante, originando várias histórias e anedotas: quando um livro não tem sucesso os editores consideram que os comerciais são normalmente os responsáveis, porque não souberam apoiá-lo junto do mercado conforme o livro certamente merecia; para os comerciais a razão do insucesso de um livro deve-se normalmente a uma má escolha do editor que, deste modo, lhes estraga os resultados e as comissões de vendas.
Os editores reclamam o seu conhecimento dos leitores e dos seus gostos de leitura; os comerciais afirmam que apenas eles conhecem a vontade dos compradores.
Os editores afirmam que só eles sabem justificar as suas apostas, o conhecimento dos autores, o seu significado cultural, a qualidade dos seus textos; os comerciais costumam sublinhar que tudo isso é irrelevante face ao que procura o mercado num determinado momento.
Eu próprio já me confrontei, há uns anos atrás, com um director comercial que entrando agitado no meu gabinete de trabalho, disparou:
- Depressa, preciso que me prepare aí um livro sobre micro-ondas...
E a verdade, acreditem, é que lhe preparei um livro de receitas para micro-ondas, criadas especialmente pelo Manuel Luís Goucha, tão grande era a sua expectativa e entusiasmo. Foi evidentemente um insucesso; quando o livro saiu já os compradores estavam a pensar noutra coisa, já as livrarias estavam cheias de outros livros similares. Assim acontece, quase sempre, com os livros chamados “de ocasião”... Julgamos sempre ser os primeiros; há que reconhecer, modestamente, que somos normalmente apenas “mais uns”. Para repararmos o desastre tivemos de vender o stock a um fabricante de micro-ondas que o ofereceu depois com a compra do seu equipamento.
Por isso, certamente, Giulio Einaudi proibia firmemente este tipo de discussões nos seus conselhos de leitura. “Um livro publica-se se é bom; não se publica se é mau” – costumava dizer. E toda a estratégia de marketing e comercial há-de construir-se depois, para servir adequadamente as características do livro e a sua especificidade. Para isso devem servir os especialistas nestas matérias, sempre que tenham, no mínimo, a curiosidade de ler aquilo que depois irão promover.
O que normalmente não acontece.
Einaudi foi um editor que marcou o seu tempo, provocando constantemente, com as suas decisões e escolhas atrevidas, o gosto imediato dos seus leitores.
Em todos os aspectos, desde as suas capas brancas, com um grafismo moderno, inconfundível e uniforme (desenhado para a eternidade por Bruno Munari), ao cuidado que punha no interior dos seus livros, muito bem paginados, sempre compostos no mesmo e inconfundível tipo de letra. Conta-se que outros editores, desejando imità-lo, percorriam a Itália à procura desses tipos maravilhosos e elegantes, sem jamais os conseguirem descobrir. Conta-se até que alguns editores de outros países (parece que também de Portugal, que nisto de copiar o alheio não fica atrás de ninguém) se deslocavam propositadamente a Itália na tentativa de trazer consigo cópias desses tipos. Nunca ninguém o conseguiu. Só ele dispunha deles e, para surpresa de todos, veio depois a descobrir-se, após a sua morte em 1999, que os havia patenteado.
Pertencendo a uma raça de editores hoje em vias de extinção, submersa pelos imperialismos do mercado, pelos fundamentalismos da nova economia, pela lógica de funcionamento dos grandes Grupos, Einaudi foi capaz de inspirar a geração seguinte, aqueles que souberam interpretar e dar atenção ao trabalho exemplar que realizava com os seus autores.
Os livros não são coisas pontuais – já o disse em crónica anterior.
Tal como Feltrinelli, seu amigo, colega, camarada e concorrente, soube construir um catálogo e juntar um conjunto de autores que ainda hoje faz do seu nome um sinal de qualidade, apesar de a editora que fundou, em 1933, ter acabado nas mãos do Grupo de empresas de Sílvio Berlusconi.
Mas não foi ele o único a marcar deste modo as gerações posteriores. Antes, na primeira metade do século, o mesmo aconteceu em França com Gaston Gallimard, sobretudo pelas relações peculiares que soube cultivar com o conjunto dos seus autores, representando uma das mais ricas gerações da literatura francesa: Proust, Gide, Valery, Aragon, Malraux, André Breton que, quando jovem, Gaston começou por acolher como simples revisor de provas da editora.
Conta-se que, no inicio da manhã, quando chegava ao escritório, Gaston se isolava e a primeira coisa que fazia era responder demorada e detalhadamente à correspondência dos seus autores. Em longas cartas manuscritas.
Com Malraux, Gallimard obrigou-o a desviar-se das suas longas e loucas aventuras asiáticas e a escrever um livro a tempo inteiro, pagando-lhe para isso uma espécie de salário. Quando terminou, o ainda jovem Malraux (32 anos) trazia consigo o manuscrito de “A Condição Humana”, obtendo com ele o Prémio Gongourt desse ano.
Em 1977, imitando-o de um modo nada modesto, eu próprio faria o mesmo com Maria Velho da Costa, convidando-a a fechar-se em casa durante alguns meses, assumindo os encargos de uma licença sem vencimento no seu emprego habitual, criando as condições para que pudesse concluir o romance “Casas Pardas”, que haveria de ganhar depois o Prémio Cidade de Lisboa desse ano.
Um editor, costumava repetir Siegfried Unseld, o prestigiado editor de Surhkamp falecido em Outubro do ano passado, é aquele que é capaz de desbloquear energias, de animar, promover e fazer viver a literatura da sua época.

Publicado no DNA de 08.03.2003



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