domingo, dezembro 21, 2003
137 - NATAL DE 2003...
Após algum silêncio (cansaço? rejeição?), volto para vos dar a ler um breve texto de José Cardoso Pires.
Foi Inês Pedrosa quem me chamou a atenção para ele, enviando-mo junto com as suas felicitações natalícias deste ano.
Não é um texto escrito a propósito do Natal, embora se lhe cole bem – e essa é certamente uma das suas maiores curiosidades. Teria o Zé tido consciência dessa colagem?
A outra coincidência é o peso que envolve esta frase extraordinária: “ (…) Pai da Vida, de quantas mães é feita uma criatura.” - que também pode ser uma frase de Natal.
É um trecho de “Alexandra Alpha”, de 1987, o primeiro dos romances do Zé que publiquei na Dom Quixote, depois do fim prematuro da Moraes Editores. O romance de que ele mais gostava… com algum desgosto pelo facto de os leitores, a critica e os amigos não pensarem o mesmo.
Aqui fica, neste Natal de 2003, para que continuemos a recordar a sua escrita - aqueles que infelizmente não puderem continuar a recordar também a sua amizade.
*
“Não era noite nem era dia quando a preta entrou nas avenidas do comércio e
dos carros uivantes. Ipanema, bairro dos ricos, dos bares e das noites
festivas, Rua Barão da Torre. A certa porta deteve-se de nariz levantado,
farejando a brisa que vinha do mar por entre os prédios. Farejou, farejou.
Depois, apertando a mão que conduzia o menino, ela e ele subiram de elevador
até às alturas, levados por um traço de som.
Anunciou-se ao abrir da porta, solene e muito hirta. Apesar dos colares
garridos, do branco-algodão do vestido, das pulseiras e das missangas, tinha
a imprecisão dum crepúsculo maligno; a abundância das ancas e dos seios
dava-lhe uma imponência de carnaval. Assim apareceu a Alexandra e assim se
pronunciou: "Chamo-me Natividade", disse, "e este é Roberto, filho de
Roberto que Deus levou. Passe bem."
Alexandra, ao olhar para a criança, foi como se um clarão a tivesse
emudecido: aquele era o rosto vivo do bem-amado.
Mais: aquele era o rosto de Neusa, a mãe.
Porque Alexandra tinha conhecido Neusa Paloma nesse ano pelo Natal durante
os poucos dias que o Reformatório lhe concedera para visitar o filho. Ela
também viera ali, ao apartamento da Barão da Torre. Aparecera-lhe trazida
por Waldir, e fora a mesma assombração ao vê-los juntos: era tão igual ao
marido na beleza e nos gestos que pareciam gémeos de carne, não esposos. Tão
igual à criança que acabavam de lhe entregar que eram os dois agora
repetidos numa terceira criatura.
Assim foi que, estando Alexandra na solidão dos proscritos e sob o peso duma
traição que lhe fora revelada pela morte, viu surgir a enviada negra com o
menino que o destino lhe legava. Menino que ela recebeu pousando-lhe a mão
na cabeça, sem mais nada. Como um sinal de confirmação, como um selo. E
quando levantou os olhos a figura da mulher tinha-se sumido pelo poço do
ascensor abaixo e era apenas um som sibilino a rasgar-se no vazio, um
zumbido e uma luzinha a descerem suavemente e a deixarem para trás um
incenso, um rasto quente, as ervas da purificação, pensou Alexandra fechando
a porta do apartamento.
Ali ficou a criança, entre paredes de luz, reproduções de Portinari, música
hi-fi, arte amazónica. Um lugar espaçoso comandado pelo estranho desenho de
um homem-pássaro segurando uma mulher nua pelos cabelos ( The Birdman, Max
Ernst ), livros, whisky, um lugar limpo e ordenado, na verdade muito
diferente do antro de fumos, de altares e de responsos onde o menino
estivera ocultado desde a nascença. Ali ia ele retomar a infância pela mão
duma outra mulher: Alexandra, chamava-se ela, e era a que sucedia à mãe
negra, a qual, por sua vez, já tinha sucedido à mãe loura, a primitiva e
natural, Pai da Vida, de quantas mães é feita uma criatura. Esta seria
mãe-irmã, diversa de todas as mais, e só muito depois a criança saberia que
ela viera de cidades longe, no outro lado do mar. Que tinha vários nomes,
isso também lhe seria revelado. Que o primeiro era Alexandra e o último
Maninha, este só para uso dela e dele e derivado de Mana, Mana Alexandra ou
Mana Xana, que era como os amigos a conheciam no país donde provinha.
Eis então Roberto, filho de Roberto, na sua nova morada; permaneceu nela
pelo espaço de trezentos dias e trezentas noites. Passado que foi esse prazo
de iniciação, Alexandra voou com ele por cima do oceano no sentido contrário
ao do sol e através das pradarias do céu, que são feitas de nuvens
infinitas; quando pisaram terra firme era outra vez Natal e estavam noutra
cidade.
JOSÉ CARDOSO PIRES
( in Alexandra Alpha, 1987, Dom Quixote)
Foi Inês Pedrosa quem me chamou a atenção para ele, enviando-mo junto com as suas felicitações natalícias deste ano.
Não é um texto escrito a propósito do Natal, embora se lhe cole bem – e essa é certamente uma das suas maiores curiosidades. Teria o Zé tido consciência dessa colagem?
A outra coincidência é o peso que envolve esta frase extraordinária: “ (…) Pai da Vida, de quantas mães é feita uma criatura.” - que também pode ser uma frase de Natal.
É um trecho de “Alexandra Alpha”, de 1987, o primeiro dos romances do Zé que publiquei na Dom Quixote, depois do fim prematuro da Moraes Editores. O romance de que ele mais gostava… com algum desgosto pelo facto de os leitores, a critica e os amigos não pensarem o mesmo.
Aqui fica, neste Natal de 2003, para que continuemos a recordar a sua escrita - aqueles que infelizmente não puderem continuar a recordar também a sua amizade.
*
“Não era noite nem era dia quando a preta entrou nas avenidas do comércio e
dos carros uivantes. Ipanema, bairro dos ricos, dos bares e das noites
festivas, Rua Barão da Torre. A certa porta deteve-se de nariz levantado,
farejando a brisa que vinha do mar por entre os prédios. Farejou, farejou.
Depois, apertando a mão que conduzia o menino, ela e ele subiram de elevador
até às alturas, levados por um traço de som.
Anunciou-se ao abrir da porta, solene e muito hirta. Apesar dos colares
garridos, do branco-algodão do vestido, das pulseiras e das missangas, tinha
a imprecisão dum crepúsculo maligno; a abundância das ancas e dos seios
dava-lhe uma imponência de carnaval. Assim apareceu a Alexandra e assim se
pronunciou: "Chamo-me Natividade", disse, "e este é Roberto, filho de
Roberto que Deus levou. Passe bem."
Alexandra, ao olhar para a criança, foi como se um clarão a tivesse
emudecido: aquele era o rosto vivo do bem-amado.
Mais: aquele era o rosto de Neusa, a mãe.
Porque Alexandra tinha conhecido Neusa Paloma nesse ano pelo Natal durante
os poucos dias que o Reformatório lhe concedera para visitar o filho. Ela
também viera ali, ao apartamento da Barão da Torre. Aparecera-lhe trazida
por Waldir, e fora a mesma assombração ao vê-los juntos: era tão igual ao
marido na beleza e nos gestos que pareciam gémeos de carne, não esposos. Tão
igual à criança que acabavam de lhe entregar que eram os dois agora
repetidos numa terceira criatura.
Assim foi que, estando Alexandra na solidão dos proscritos e sob o peso duma
traição que lhe fora revelada pela morte, viu surgir a enviada negra com o
menino que o destino lhe legava. Menino que ela recebeu pousando-lhe a mão
na cabeça, sem mais nada. Como um sinal de confirmação, como um selo. E
quando levantou os olhos a figura da mulher tinha-se sumido pelo poço do
ascensor abaixo e era apenas um som sibilino a rasgar-se no vazio, um
zumbido e uma luzinha a descerem suavemente e a deixarem para trás um
incenso, um rasto quente, as ervas da purificação, pensou Alexandra fechando
a porta do apartamento.
Ali ficou a criança, entre paredes de luz, reproduções de Portinari, música
hi-fi, arte amazónica. Um lugar espaçoso comandado pelo estranho desenho de
um homem-pássaro segurando uma mulher nua pelos cabelos ( The Birdman, Max
Ernst ), livros, whisky, um lugar limpo e ordenado, na verdade muito
diferente do antro de fumos, de altares e de responsos onde o menino
estivera ocultado desde a nascença. Ali ia ele retomar a infância pela mão
duma outra mulher: Alexandra, chamava-se ela, e era a que sucedia à mãe
negra, a qual, por sua vez, já tinha sucedido à mãe loura, a primitiva e
natural, Pai da Vida, de quantas mães é feita uma criatura. Esta seria
mãe-irmã, diversa de todas as mais, e só muito depois a criança saberia que
ela viera de cidades longe, no outro lado do mar. Que tinha vários nomes,
isso também lhe seria revelado. Que o primeiro era Alexandra e o último
Maninha, este só para uso dela e dele e derivado de Mana, Mana Alexandra ou
Mana Xana, que era como os amigos a conheciam no país donde provinha.
Eis então Roberto, filho de Roberto, na sua nova morada; permaneceu nela
pelo espaço de trezentos dias e trezentas noites. Passado que foi esse prazo
de iniciação, Alexandra voou com ele por cima do oceano no sentido contrário
ao do sol e através das pradarias do céu, que são feitas de nuvens
infinitas; quando pisaram terra firme era outra vez Natal e estavam noutra
cidade.
JOSÉ CARDOSO PIRES
( in Alexandra Alpha, 1987, Dom Quixote)