segunda-feira, setembro 15, 2003

 
100 - ANTÓNIO LOBO ANTUNES


Leio este texto de Christophe Mercier (publicado no Figaro Littéraire de 28.08.2003) sobre os romances de António Lobo Antunes.
Deixo-o por aqui.
Julgo ser um texto-sintese, muito bem feito, clarificador do percurso do escritor. Útil sobretudo para aqueles que têm “tropeçado” na aparente complexidade dos seus romances mais recentes.
Os destaques a negro são meus; a tradução é do Miguel Serras Pereira.


CEDER À EMBRIAGUEZ
COM ANTÓNIO LOBO ANTUNES

Christophe Mercier

Os seus títulos tornam-se cada vez mais esotéricos: a Exortação aos Crocodilos e Não Entres Tão Depressa Nessa Noite Escura sucede Que Farei Quando Tudo Arde? Os seus livros são cada vez mais volumosos: 500 páginas, 660, 710, para os três mais recentes. Parecem-se cada vez menos com romances (Não Entres Tão Depressa Nessa Noite Escura tinha, aliás, por subtítulo Poema). A obra de António Lobo Antunes acabou, todavia, por transpor o círculo fechado de uns quantos amadores (ainda que os jurados do Nobel se tenham dado ao ridículo de, entre dois portugueses, escolherem o laborioso José Saramago), para ser reconhecida como uma das mais importantes e mais inovadoras da literatura do século XX.
Com António Lobo Antunes, estamos do lado de Faulkner (Lisboa e os seus bairros velhos são o seu Yoknapatawpha, o Tejo o seu Mississipi e Angola a sua Guerra de Secessão), mas de um Faulkner que, em vez de evoluir no sentido da simplicidade cristalina de Os Ratoneiros, tivesse tomado o rumo de uma complexidade cada vez maior, de uma cada vez maior liberdade relativamente a quaisquer regras: um livro de Lobo Antunes parece não ter modelo algum, inventar os seus próprios cânones, fazer recuar os seus próprios limites. O mesmo é dizer que não se aconselhará o neófito a começar a Obra através dos últimos opus, mas a descobri-la pela ordem segundo a qual foi escrita, único meio de vir a compreender o seu desenvolvimento quase orgânico.
António Lobo Antunes nasceu em 1942, em Lisboa, numa família de médicos. Muito jovem cai no caldeirão da literatura e devora, muitas vezes em versão original (fala francês, inglês, alemão, além do português), Proust, Céline, Faulkner, Tolstoi, Thomas Wolfe. Faz-se já sentir o gosto das grandes arquitecturas. Mas também lê muito Tchekov. Terá sido por isso que, antes de se tornar escritor, fez estudos de medicina? Será psiquiatra. Mas, antes, terá de ir para Angola, como médico militar, durante dois anos, e de viver no terreno uma guerra de descolonização dolorosa e sangrenta cujas imagens impregnarão uma grande parte da sua obra.
De regresso, trabalha como psiquiatra no hospital, mas começa a escrever, talvez à laia de exorcismo. Memórias de Elefante (1979), Os Cus de Judas (1979), Conhecimento do Inferno (1980) são como uma trilogia catártica. Lobo Antunes fala da sua profissão de psiquiatra, dos anos passados em Angola, do seu divórcio, dos seus pais, da sua infância. Numerosos dos seus temas futuros estão já presentes, e até mesmo a sua maneira: desde Memória de Elefante, o “argumento” é evacuado, e o romance torna-se um encadeamento lírico de imagens ao sabor da fantasia desperta do autor, uma cascata de metáforas que já não se ligam umas às outras segundo o fio de uma intriga-pretexto, mas que se associam segundo as cores que introduzem no conjunto.
Com Explicação dos Pássaros (1981), Fado Alexandrino (1983), O Auto dos Danados (1985), a obra assume uma nova dimensão. Lobo Antunes transforma-se deveras em romancista, inventa personagens, entrecruza as histórias. Explicação dos Pássaros e O Auto dos Danados narram peripécias familiares que têm lugar no mundo da boa burguesia portuguesa, e o leitor descobre um novo círculo de O Inferno. É Mauriac reescrito por Céline: lirismo, sempre, cólera, excesso, humor “enorme”, narrativa transportada pela musicalidade da língua, secreta nostalgia da infância. As conversas sobrepõem-se, as épocas correspondem-se, o romance torna-se uma tapeçaria de motivos visuais, musicais, que se ecoam uns aos outros. Fado Alexandrino, através dos monólogos cruzados de cinco militares de regresso de Angola, o romance mais “faulkneriano” do romancista, é um quadro quase balzaquiano de um Portugal em pleno descalabro, no qual os fracassos dos indivíduos não são senão os reflexos dos de um país à deriva, em vias de se afundar.
As Naus (1988), lancinante lamento que evoca a glória de um Portugal degradado, persiste na mesma via, e anuncia os êxitos que se vão seguir. Porque, daí em diante, Lobo Antunes enceta um período soberano. Tratado das Paixões da Alma (1990) é um ponto culminante como os quatro ou cinco títulos seguintes. É um romance bufo, lírico, poético, satírico, político: o escritor mistura histórias de família, a epopeia burlesca de terroristas lamentáveis que conspiram contra Salazar, as visões nostálgicas de uma infância magnificada. A Ordem Natural das Coisas (1992), A Morte de Carlos Gardel (1994), O Manual de Inquisidores (1996), O Esplendor de Portugal (1998), Exortação aos Crocodilos (1999), manifestam, cada um por sua conta, um domínio e uma liberdade cada vez maiores. Os temas são sempre os mesmos: a descolonização, a decadência, o regime policial, a Revolução dos Cravos, as velhas famílias que se extinguem, as gaivotas por cima do Tejo, os velhos que repisam o passado e morrem de tédio em apartamentos medíocres de bairros esquecidos de Lisboa, fora do tempo. Com estes romances, Lobo Antunes torna-se músico: a sua escrita assenta nos ritmos, nas rimas, nas imagens. Faz uma literatura de pura emoção. Cada vez mais vezes, tudo é visto como num sonho, a intriga perde os seus contornos precisos, e é com o recuo, depois de terminado o livro, que o leitor atento a reconstitui. Nunca se aconselhará demais o leitor apressado que descubra a obra de Lobo Antunes através do Tratado das Paixões da Alma, deixando-se levar até à Exortação aos Crocodilos.
Com Não Entres Tão Depressa Nessa Noite Escura (2001) e Que Farei Quando Tudo Arde?, última cria da ninhada, é transposto mais um patamar de liberdade criadora, de emancipação de todas as regras. Nestes dois romances deixamos o veio político pelo veio familiar: são dois ajustes de contas com a infância. Para o escritor português, o romance torna-se mais do que nunca o lugar da vacilação, da subjectividade. À medida que o poema (pois é bem de poesia narrativa e lírica que se trata) se desenvolve, a intriga que pensámos ver aparecer por entre a bruma dissipa-se, bifurca-se, desaparece, como um desenho numa vidraça embaciada. O essencial já não é a história contada (em Que Farei Quando Tudo Arde?, temos um jovem traumatizado pela recordação dos pais; com algum motivo: o pai é um velho palhaço que deu em travesti e companheiro de um jovem drogado, e a mãe uma ex-professora primária que caiu na prostituição e no alcoolismo; estamos em pleno melodrama), mas as emoções suscitadas pela maneira de a contar. A arte já não é uma arte narrativa, mas uma arte decididamente musical. Devemos deixar que nos transportem as vagas desta prosa-poesia cada vez mais pessoal, ampla, de um virtuosismo crescente, aceitar as suas obscuridades, beber toda a sua sumptuosidade: deixarmo-nos, numa palavra, embriagar. Só a esse preço poderemos apreciar uma obra que, de consumação em consumação, continua a incomodar, a desconcertar, a descobrir novos territórios.
Ao longo de um século inteiro, as obras de dimensão comparável podem contar-se pelos dedos da mão.