sábado, agosto 30, 2003

 
088 - AUTORES

Aqui fica arquivada mais uma história de autores. Esta publicada hoje mesmo pelo DNA.
Depois de Vergilio Ferreira, do Zé Cardoso Pires, do António Lobo Antunes, do Ruy Belo, do José Gomes Ferreira, dou um salto no tempo até a uma geração posterior:

INÊS PEDROSA

On ne bâtit un bonheur que sur un fondement de désespoir.
Je crois que je vais pouvoir me mettre à construire.

M. Yourcenar


O Pedrosa, o Ricardo Pedrosa, era um matemático competente, um homem grande e austero, mas de uma simpatia e cordialidade que parecia não ter a ver com o seu corpo grande, bem constituído, de atleta. Creio que isso lhe vinha dos muitos anos como oficial miliciano a que esses tempos obrigavam, como daí lhe viriam também os hábitos de disciplina e de rigor com que organizava meticulosamente a sua vida. Trabalhámos juntos muitos anos, lado a lado, sob a direcção do Doutor Camelo, o Dr. Amândio Camelo, tal como o Pedrosa, também já falecido.
Trabalhávamos com boa disposição, cultivávamos o humor e a brincadeira. O Doutor Camelo, que não era propriamente um ás do volante, era até frequentemente insultado durante a condução:
- Seu camelo... – berravam-lhe amiúde de dentro dos outros carros.
Ao que ele respondia, erguendo cortesmente o chapéu:
- Como está, passou bem... – como se se dirigisse a alguém que acabasse de o reconhecer.
O Pedrosa era um pai-galinha, como se costuma dizer, vaidoso das suas crias, de quem cuidava enternecido e babado, mas simultaneamente com aquela austeridade que parecia querer mostrar que “a coisa não era nada com ele”..
Periodicamente, porém, lá tínhamos de aguentar a cena. O Pedrosa trazia a filha para mostrar aos colegas. Ora porque ia com ela a uma consulta médica, ora para não ficar sozinha em casa, todos os pretextos lhe serviam. Lá vinha a criança vestidinha de branco, com um vestido rodado, laçarotes, fazer gracinhas para o emprego do papá. O Pedrosa pegava-lhe ao colo, punha-a de pé em cima da secretária, e a menina lá ia fazendo as suas habilidades.
Foi assim que primeiro conheci a Inês.
É-me difícil localizar no tempo quando tudo isto se passava, mas certamente há bem mais do que trinta anos.
Depois de concluídas as suas palhaçadas a Inês andava de colo em colo, lambuzava-nos a cara com os seus beijos molhados de chocolate, lembro-me que perguntava tudo a todos, queria saber tudo, perante o olhar embevecido mas distante do Pedrosa.
Quando a voltei a encontrar, anos mais tarde, e o nosso convívio verdadeiramente começou, era ela já uma jornalista literária, colaborando no JL, escrevendo sobre livros, fazendo entrevistas a escritores importantes. Lembro-me que a sua escrita me impressionou pela qualidade, consistência e desenvoltura – nós, os editores, achamos sempre que conseguimos aprender a reconhecer estas “promessas”.
Deixei passar mais uns anos, calmamente, até lhe fazer o desafio:
- Quando é que tentas escrever um romance?
Não se pode fazer estes desafios a pessoas determinadas como a Inês. É uma costela que lhe ficou certamente do Pedrosa, tanto quanto se pode falar assim. O que é certo é que a Inês, sem dizer nada a ninguém, organizou a sua vida, recolheu-se um pouco das saídas nocturnas, aproveitou a organização de um primeiro casamento e pôs-se a escrever. Um dia convidou-me a passar lá por casa, numa tarde de sábado.
- Aqui tens. Chama-se A Instrução dos Amantes...
Colocou-me nos braços um maço de folhas dactilografadas e só então me revelou que era a filha do Pedrosa, a quem entretanto eu tinha perdido o rasto.
Pedi-lhe um lápis emprestado (já não sei ler sem lápis, mesmo que o não use) e, logo em sua casa, iniciei a leitura. Publiquei o livro em Abril de 1992, já lá vão mais de dez anos, e até hoje já fez para aí umas 10 edições, foi traduzido em Espanha, incluído em bolso, vai a caminho de outros países e de outras aventuras.
Desde essa data, construímos em conjunto vários projectos, envolvemo-nos em muitas iniciativas editoriais, trabalhámos em muitos livros, construímos uma relação de cumplicidade e amizade estreitas, a Inês publicou entretanto mais dois romances que, a meu ver, comprovaram sobejamente o desafio que lhe havia feito.
Não tive outra importância que não essa, tê-la sabido desafiar. O resto foi tudo trabalho seu. Muito trabalho seu.
Entretanto o Pedrosa faleceu, apressadamente, de surpresa, sem dar tempo a que nos voltássemos a encontrar. Conheceu ainda a neta, a Laura, com quem se preparava certamente para se enternecer, do mesmo modo que havia feito com a filha, mas já sem necessidade de exibir a antiga austeridade, que isto com os netos, como sabem os que lá chegaram, é uma coisa diferente, já sem espaço para austeridades.
Depois disso, como com o primeiro romance, a Inês pôs-se a escrever entrelaçando agora na sua escrita o peso de uma morte recente, o lado vagaroso de um trabalho que queria por força entender a densidade do que havia caído sobre ela. Daí nasceu este seu último romance, Fazes-me Falta, atingindo num curto espaço de tempo mais de 50.000 leitores em Portugal, para além das edições em Espanha, Alemanha, França, Brasil.
Decidiu, amavelmente, dedicar-me este livro. Devia tê-lo feito, antes, com o primeiro. O único de que, como editor, tenho motivos para me orgulhar. Tudo o mais, a seguir, foi trabalho dela. Só dela.