domingo, junho 29, 2003

 
041 - AUTORES, 1


JOSÉ CARDOSO PIRES

a pior desgraça dum bebedor é deixar o copo a meio
in A Cavalo no Diabo


Sempre tive dificuldade em entender os editores que não têm na relação com os seus autores a parcela mais importante do seu trabalho. Por mim sempre tentei fazer o contrário, iniciando relações profissionais que invariavelmente acabaram em estreitas relações de amizade. Não faz para mim qualquer sentido que o trabalho de um editor não se dirija em primeiro lugar à cumplicidade e à solidariedade com os seus autores.
Sei que há editores que procedem de modo inverso, ocupando a sua vida a ver catálogos, a ler informações sobre livros, a folhear revistas literárias, a consultar listas de best-sellers, a contactar com agentes, a comprar direitos a editores estrangeiros, escolhendo livros ou seleccionando manuscritos de que não conhecem os autores.
Por mim procuro sempre começar pelos autores.
Mesmo a intermediação dos Agentes, que com o evoluir dos tempos se tornou inevitável e imprescindível, sempre me deixou algo perplexo, apesar das estreitas relações que mantenho com a maior parte deles. Não sei como começou esta profissão, ignoro quem foi o primeiro agente a iniciar a sua actividade de representação, ou o primeiro escritor a fazer depender dela a sua relação com os seus editores. O primeiro contacto que tive com esta profissão, lembro-me bem, era ainda criança, foi através de uma senhora muito bem falante e muito bem engomada, que visitava periodicamente a nossa casa, e com quem o meu avô tinha de repartir, numa percentagem significativa, os resultados da sua actividade de contrabandista. A “Mulher do Neves”, anunciava a minha avó quando ela batia à porta. Ela entrava, instalava-se com ar arrogante, bebia o chá, e passava a tarde a falar de percentagens com o meu avô que invariavelmente cedia às suas exigências.
Passada a infância, tenho continuado a conviver com a “Mulher do Neves” sob as mais diversas formas, mesmo aqui, na actividade editorial.
A minha relação com o José Cardoso Pires durou mais de trinta anos e foi ele que, infelizmente, acabou por a interromper.
Conhecemo-nos mais ou menos por altura do suplemento literário do Diário de Lisboa e do & Etc., ainda publicado como suplemento do Jornal do Fundão, dirigido pelo nosso querido amigo António Paulouro, recentemente falecido. O Zé e o Vítor Silva Tavares eram os dinamizadores destes dois projectos; eu, um critico literário ainda em fase de aprendizagem.
O Zé acabara de lançar O Delfim com alguma inovação promocional para a época – estaríamos para aí em 1968 – mas a nossa relação profissional só viria a iniciar-se mais tarde, em 1977, com a publicação do E Agora José?, quando eu, depois da Arcádia (onde o Zé também publicou) dirigia a Moraes Editores.
Trabalhámos estes anos todos, até à sua morte em 26 de Outubro de 1998, sem nunca termos assinado um contrato de edição. Um dia, quando ambos o constatámos – o contrato existia, tínhamo-lo certamente discutido e acertado, mas ambos nos esquecêramos de o assinar – resolvemos ir comemorar devidamente a singularidade e a confiança da nossa relação de trabalho. O Zé costumava dizer, aliás, que as maiores amizades se forjam na seriedade de uma relação de trabalho.
Fui vê-lo ao hospital de Santa Maria poucos dias antes de falecer. Pedi para que nos deixassem sós. E falei com ele quando certamente já não podia ouvir-me. Os médicos diziam: sabemos pouco a este respeito...; ignoramos se o cérebro destes doentes ainda lhes permite ouvir-nos. Mesmo assim resolvi tentar. E conversei com ele longamente, como fazíamos tantas vezes, falei-lhe de projectos em que estávamos a trabalhar, tentei pedir-lhe que tivesse forças. O Zé abria os olhos, umas vezes parecia concordar, outras discordar, com aquele ar refilão e lisboeta que lhe conhecia tão bem. Comovi-me evidentemente. Mas ainda hoje continuo a pensar, ao contrário dos médicos, que ele me conseguiu ouvir.
As relações de trabalho com os autores não são coisa fácil – talvez por isso alguns editores, como aqueles que já citei, fujam um pouco destas tarefas. Com o Zé isso era particularmente verdade. Ele trazia os livros todos na cabeça. Quer dizer: depois de os escrever, concebia integralmente a capa, o tipo e o corpo da letra em que os queria impressos, a mancha da página, as referências da contracapa, a promoção, o lançamento, etc. Era de um rigor e meticulosidade impressionantes. Fazia desenhos do que queria e como queria, montava em folhas de papel cuidadosamente dobradas o aspecto do caderno inicial, a ficha técnica, a dedicatória, a altura exacta em que deveriam iniciar-se os começos de capítulo.
Entrava no meu gabinete de trabalho manhã cedo – o Zé nunca sentiu necessidade de pedir para ser recebido – punha em cima da mesa todos os seus esquemas e papelinhos (muitos dos quais evidentemente conservo), trabalhávamos até à hora do almoço discutindo tudo com o maior rigor. Profissionalmente, seria a palavra exacta, e seria a palavra que certamente ele mais gostaria de utilizar.
Ao almoço, então, púnhamos a “escrita em dia”, falando de literatura e de política, fazendo projectos, comentando escritores que ele respeitava e outros que o irritavam. Estes almoços eram sempre especiais. Normalmente acabavam com a Edite a vir buscar-nos para o jantar, para o qual já seriam mais do que horas... Nunca consegui perceber como é que ela nos conseguia descobrir, não existindo ainda os malfadados telemóveis. Mas a verdade é que nos encontrava sempre.
Nessa altura eu atrevia-me pouco a comentar-lhe os textos ou os títulos, tão grande era a cerimónia e o respeito que lhe tinha. Depois, com o passar dos anos, fui ganhando coragem para assumir em pleno o meu trabalho de editor, como ainda hoje o entendo, o primeiro leitor, o cúmplice, aquele com quem o escritor não tem que ter cerimónias. E passei a atrever-me, a discutir, a comentar, a sugerir, acabando com ele a escrever-me: “deixo-o comprometido com esta escrita e rogo ao Porco Sujo que faça com que ela lhe agrade”.
É verdade, já me esquecia: levámos trinta anos a resmungar um com o outro sem que nunca nos chegássemos a tratar por tu.
Quando morreu, o Presidente da Câmara de Lisboa, a cidade que ele amava e tanto lhe deve, apressou-se a prometer uma rua digna do seu nome, a Biblioteca Publica da Freguesia de Alvalade também com o seu nome e, dentro desta, uma sala onde depositar os seus livros, os seus arquivos, os seus manuscritos, a sua correspondência, de modo a permitir um acesso fácil a todos quantos quisessem estudar a sua obra.
Não consigo perdoar que nenhuma dessas promessas tenha sido cumprida, agora que se cumprem cinco anos após a sua morte. E isto, apesar da disponibilidade da família para ceder todos os materiais e apoiar todas as iniciativas nesse sentido.
É verdadeiramente indesculpável.
Felizmente que a Câmara Municipal de Vila de Rei soube suprir esta falha, organizando recentemente um colóquio sobre a obra do escritor seu conterrâneo e dando o seu nome a uma das suas ruas.
Que fará Lisboa entretanto ?
Sendo José Cardoso Pires, depois de Cesário, um dos seus melhores cantores.
Pouco certamente. Muito pouco, sabendo-se o estado actual das coisas da cultura.

Publicado no DNA de 14.12.2002
(Ao tentar inserir fotos apaguei os comentários recebidos. Perdoem.)

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