domingo, dezembro 05, 2004

 

163 - E FICOU TUDO DITO...


"Acreditei neste homem anos a fio mas tenho de concluir que me enganei. Não tem preparação para Primeiro Ministro e não tem lealdade para os amigos. A minha vida política acaba aqui. Vou sair de todos os lugares..."

Henrique Chaves, advogado, citado pelo Expresso de 04.12., pag. 6, texto intitulado "Enganei-me com ele..."


quarta-feira, dezembro 01, 2004

 

162 - ENTREVISTA SEMANÁRIO EXPRESSO

Nelson de Matos:
«Os jovens matam e comem os velhos»

Versão integral (reproduzida do Expresso Online) da entrevista concedida a José Pedro Castanheira e publicada na revista Actual de 27.11.2004.

Nelson de Matos rompe o silêncio e dá conta de uma profunda desilusão com a gerência da «sua» editora, a Dom Quixote/Grupo Planeta.
Ao fim de 23 anos como editor, Nelson de Matos saiu das Publicações Dom Quixote após um agitado contencioso que passou pelos tribunais. Com 59 anos, principal editor de literatura portuguesa, deu ao EXPRESSO a sua primeira grande entrevista depois de assumir o cargo de director da editora Âmbar - Ideias no Papel.

Alguma vez imaginou sair assim da Dom Quixote - uma editora que foi sua e que dirigiu durante 23 anos?
O que aconteceu entre mim e a gerência da Dom Quixote acontece por aí, hoje, infelizmente, em muitas empresas. «Os jovens matam e comem os velhos», costumava dizer-me Vergilio Ferreira citando Léon Chèstov.
As empresas já não valorizam a experiência?
Tem sido um facto natural, a substituição de pessoas experientes por outras mais jovens e atrevidas. A experiência, hoje, tem pouco valor. O problema está quando isso se mistura com uma ambição irresponsável, com um oportunismo traiçoeiro, com a total inabilidade nos procedimentos, tudo debaixo da capa de um sorriso hipócrita a tentar repetir-nos em voz baixa, «vejam lá como eu sou tão boa pessoa...».
Como foi a sua relação com os gestores espanhóis?
Após a venda da totalidade do capital da Dom Quixote (minha propriedade) ao Grupo Planeta, em 1999, continuei a exercer as minhas funções com os gestores espanhóis que foram sendo nomeados. Demo-nos sempre bem. São hoje amigos com quem me correspondo regularmente. Actuávamos com a exigência dos profissionais, mas sobrou-nos sempre a delicadeza, a simpatia, a boa educação.
Até que foi nomeado um gerente português...
Ao contrário dos anteriores, este decidiu afrontar-me, desrespeitar o meu trabalho, fazer a ponte com o oportunismo e a ambição de uns quantos trabalhadores da empresa, levar-me a uma situação insustentável, chegando ao ponto de mandar colocar-me um atabalhoado processo disciplinar para me despedir com justa causa... Pelo meio, decidiu também promover o afastamento da minha mulher, que era a directora de produção da Dom Quixote desde há mais de vinte anos. Aqui, a situação cheirou-me a «outros tempos» - quando eles iam para Peniche, elas eram despedidas nas fábricas... Achei então que não havia lugar para mais diálogos nem para a mínima cordialidade.
Deixa a Dom Quixote depois de 23 anos...
Isso é hoje um passado como outro qualquer. Desceu-se baixo de mais. Não há outra coisa a fazer senão deixar de pensar nisso. Repare, nem sequer me enviam os livros que os autores lá deixam assinados para mim...
Depois de tudo isto, está arrependido de ter vendido a Dom Quixote?

Nelson de Matos (à direita) com alguns dos seus autores: Fernando Dacosta, António Lobo Antunes, João de Melo, Lídia Jorge e José Cardoso Pires (da esq. para a dir.)

Não, não estou. Ao fim de trinta anos de profissão, aprendi muito nestes cinco anos. De facto, a experiência de um grande grupo internacional é uma coisa valiosa para nós, que estamos aqui um pouco afastados de tudo o que de importante acontece na Europa.
Tudo isto começou em 1980, quando comprou a Dom Quixote. Era uma editora média, que transformou numa das maiores editoras portuguesas.
Isso é verdade. Quando tomei contacto com a Dom Quixote, após o falecimento da Snu Abcassis (que eu tive o privilégio de conhecer, que muito estimava e que sempre considerei a fundadora da empresa), era uma pequena empresa, embora muito prestigiada, com uma marca e uma imagem de trabalho de qualidade.
Quantos livros editava por ano?
Editava, sei lá!, uns 30 livros por ano.
E quando saiu?
Editei isso, ou mais do que isso, por mês.
Curiosamente, o seu primeiro livro havia sido publicado pela Dom Quixote, em 1966.
Nessa altura, era um jovem de 21 anos, com ideias de ser escritor.
Apresentei esse livro, que se chamava «Noite Recuperada», a sete ou oito editoras, que me disseram que não e recusaram o livro. Até que o apresentei à Dom Quixote e tive uma resposta positiva.
À própria Snu Abecassis?
Sim. Fui, provavelmente, o primeiro autor de ficção da Dom Quixote.
Seguiram-se mais três livros de ficção e um ensaio de crítica literária. Curiosamente, creio que todos eles estão esgotados.
Sim, não há exemplares e eu próprio não consigo comprá-los.
O editor da Dom Quixote considerou que o Nelson de Matos autor não valia a pena ser reeditado?
Sim, achou isso. Conscientemente. À excepção do livro de crítica.
Não me diga que se envergonha do que escreveu?
Não me envergonho, mas são obras nitidamente juvenis, obras de quem começa...
Há quase trinta anos que não escreve!
É verdade. É completamente impossível regressar. Ou se é escritor uma vida inteira, ou não se é escritor. Todos os verdadeiros escritores lhe dirão isto.
Está-me a dizer que o ser escritor é uma profissão?
Ser escritor é um trabalho muito meticuloso, muito difícil, que exige um exercício permanente, uma constância, uma regularidade, e eu não me dei a esse trabalho. Para se ser escritor, para se fazer literatura, é preciso um trabalho de persistência, de rigor...
Oito horas por dia?
Se não são oito, são seis; se não são seis, são quatro... Mas é preciso escrever todos os dias e de uma forma muito consciente.
Começou a sua actividade de editor em 1974, na Arcádia, que estava encostada a um grupo financeiro onde trabalhava - você era funcionário da companhia de seguros Império.
Tive, aliás, a sorte de ter um administrador nessa companhia de seguros que gostava de música e literatura, chamado Luís Barbosa, que mais tarde apareceu na política através do CDS. Um dia disse-me: «Olhe, você que tem a mania das literaturas, tome lá uma editora e vá tomar conta dela.» Despejou-me dos seguros para uma empresa acessória, que era a Arcádia. Aí começou a minha actividade futura de editor.
Qual foi o seu maior sucesso na Arcádia?
Quando eu cheguei, a Arcádia acabava de ter o seu maior sucesso. Chamava-se «Portugal e o Futuro», do general Spínola.
Foi um «best-seller»!
Fui ainda gerir os efeitos desse sucesso. Aliás, convivi ainda com o general Spínola nesse sentido, cheguei a ir a casa dele, em Massamá. Porque ele emendava e revia as provas das reedições, introduzia emendas, etc.
Nessa aventura do «Portugal e o Futuro», você foi o braço direito do editor da Arcádia...
... Paradela de Abreu, hoje já falecido. Mas convivi na Arcádia com uma pessoa muito interessante, que foi a Natália Correia, que era a directora literária. Eu estava acima dela, porque representava o accionista, mas não se pode estar acima da Natália Correia, no dia a dia. Só se podia olhar para ela com admiração.
Editaram quantos exemplares? Duzentos mil?
Já não me lembro bem, mas foi qualquer coisa parecida.
Há algum livro, desde então, em Portugal e de autor português, que tenha vendido tanto?
Creio que o Saramago pode atingir hoje esses números. Estamos a falar de anos muito distintos e de taxas de leitura felizmente bastante diferentes.
Lê-se mais agora...
Sem dúvida, sem dúvida.
Ao contrário do que por vezes se ouve dizer.
Isso porque os editores gostam de se lamentar. Logo a seguir ao general Spínola, a Arcádia editou - e aí, já sim, por meu intermédio -, pela primeira vez em Portugal, um livro de um jovem político chamado Mário Soares, e que se chamava...
... «Portugal Amordaçado».
Acompanhei desde o princípio a feitura do livro com o Dr. Mário Soares, indo a sua casa, vendo as provas, etc. Recordo-me de que ia a sua casa, no Campo Grande, ao fim da tarde. O Dr. Soares estava sentado numa poltrona, descontraidamente, e apontava-me, à sua frente, aquele pufo onde, quando estaria sozinho, ele estenderia os pés e descansava as pernas ao fim do dia... Eu sentava-me quase no meio das suas pernas, no pufo, e ficávamos ali, frente a frente... Ele hoje provavelmente nem se lembra disso, mas eu nunca mais esqueci a primeira vez que lá fui e fiquei sentado aos seus pés.
Na altura, ele era ministro dos Negócios Estrangeiros, suponho.
Talvez.
Editou Spínola, Mário Soares... Mais algumas figuras cimeiras da política?
Não. Conheci pessoalmente Sá Carneiro e Álvaro Cunhal, mas nunca publiquei livros seus.
Seguiu-se a Moraes, a convite...
... do Pedro Tamen, que entretanto tinha sido convidado para a administração da Fundação Gulbenkian e que quase me passou a editora como herança.
Como é que se conheciam?
Conhecíamo-nos das letras. Eu andava próximo das pessoas dos jornais, dos poetas, dos escritores, dos editores. Era o meu mundo desse tempo.
Frequentava o Monte Carlo...
Sim, sentava-me à mesa onde se sentavam o Carlos de Oliveira, o José Gomes Ferreira, o José Cardoso Pires, para os ouvir. Assim como faziam outros jovens da minha idade - recordo-me do Nuno Júdice, do Gastão Cruz... Sentávamo-nos ali para os ouvir. Eles discutiam política, literatura, falavam de livros - livros que a gente depois ia procurar ler. Admirávamos aqueles homens e respeitávamo-los de uma maneira muito vincada.
Você iria buscar muita gente dessa tertúlia para as suas editoras.
Claro, quando cheguei à idade e à situação de poder ser eu a convidá-los e desafiá-los, foi isso que fiz. Naquela altura, havia alguns editores respeitáveis, mas havia outros que o não eram. Eu quis dar aos autores que amava e respeitava um trabalho, do lado da edição dos seus livros, que correspondesse à admiração e ao respeito que lhes tinha.
Houve algum editor que tivesse funcionado como uma espécie de modelo? Que o inspirasse?
Houve muitos homens que trabalharam na edição e que...
Quer mencionar alguns?
O Rogério de Moura, o Francisco Lyon de Castro de então, o Manuel Rodrigues de Oliveira, o Manuel Dias de Carvalho, entre outros, que tinham da sua profissão o lado da seriedade, da entrega ao trabalho do autor - porque o editor está ali para servir e dar a voz ao trabalho do autor.
Quando chegou à Moraes, em 1976, já estava em decadência.
Já, mas era uma editora extremamente simpática e que correspondia, na perfeição, àquilo que era o meu objectivo desde sempre: era uma editora de autores portugueses. Tinha uma colecção de poesia portuguesa que era assinalável: Sophia de Mello Breyner, Jorge de Sena, o próprio Pedro Támen, António Ramos Rosa, Ruy Belo, tantos poetas importantes e que eu tive a felicidade de acompanhar. E depois teve, chamados por mim, um conjunto de outros escritores, como o José Gomes Ferreira, o José Cardoso Pires, o José Saramago e muitos outros. A Moraes foi o meu primeiro grande ensaio, valioso ensaio. É uma pena ter interrompido o seu percurso.
Tinha uma livraria simpatiquíssima...
... com um livreiro excepcional, o Edmundo, e que foi um excelente companheiro de trabalho. Era uma editora que, de facto, correspondia inteiramente àquilo que eu pensava da edição e àquilo que eu queria fazer. Foi o meu primeiro ensaio para trabalhar com autores portugueses. Desde essa altura que há uma frase que eu repito em todo o meu percurso: não faz sentido ser editor em Portugal de costas voltadas para a produção cultural nacional. Foi aí que começou a minha relação com o José Cardoso Pires, o José Gomes Ferreira, o Nuno Bragança, a Maria Velho da Costa, o Saramago, com quem tive um acidente...
Na Moraes, tinha reuniões com um administrador que andava armado...
Essa é uma história engraçada, ocorrida durante o Verão Quente. A Moraes pertencia a O Século e foi apanhada pela agitação que se verificou dentro do jornal «O Século». Como accionista da Moraes, O Século tinha direito a nomear um administrador: o sr. Pinto. Não me lembro do seu nome, era o sr. Pinto, que chegava às quintas-feiras para a reunião de administração. Trazia uma pasta de mão e, dentro, uma arma. Chegava, punha a pistola em cima da mesa e dizia: «Ora vamos lá ver o que é que você tem aí para publicar!»
A reunião era a dois?
Éramos os dois da administração - talvez ele fosse o presidente, já não sei. Discutíamos então a programação e os problemas da editora com uma pistola em cima da mesa. Estas histórias existiram por todo o lado.
O que é feito do sr. Pinto?
Não faço ideia. Sei que o sr. Pinto pertencia ao MRPP, que era um partido que muito influenciava a vida de «O Século» nessa altura.
Estamos, portanto, perante um quadro «proletário» que achava que você era um «social-fascista»...
Exactamente. Para o sr. Pinto, eu era um social-fascista e confrontávamo-nos nessa situação. Não sei quem é hoje o sr. Pinto. Era um senhor de barbas, forte...
Você também tem barbas...
Mas a barba dele era maior... Apesar da pistola e da consideração de que eu era um social-fascista, não me lembro de termos tido nenhum grande desacordo. Fomos sempre educados.
Não foi devido à pistola que você não editou o Saramago?
Não, não. A história do Saramago é posterior. Mas houve outra história na Moraes muito engraçada, quando me apareceu alguém dizendo que era um operacional do ELP.
O Exército de Libertação de Portugal, de extrema-direita...
... pura e dura, envolvido no bombismo, etc. Apareceu-me com um pacote de cartas do Eça de Queirós. Isto, após eu ter publicado o romance inédito do Eça, «A Tragédia da Rua das Flores», que foi um acontecimento editorial naquela altura. Era o primeiro livro do Eça inédito que se publicava ao fim de tantos anos.
O que queria esse fulano do ELP?
Aproveitando essa situação sobre o Eça, queria-me vender aquelas cartas.
Alegadamente inéditas.
Inéditas e verdadeiras. Tive o cuidado de chamar um especialista em Eça de Queirós, o arquitecto Campos Matos, que me explicou que as cartas eram verdadeiras, dirigidas ao conde de Arnoso e pertencentes, portanto, à família e sucessores do conde de Arnoso - ou seja, hoje, à família Espírito Santo. A posse das cartas, portanto, era indevida.
Eram roubadas?
Posse indevida - não vou acrescentar mais. Contactei a família Espírito Santo e consegui estabelecer um acordo, em que pus o senhor do ELP numa sala ao lado do meu gabinete e o representante da família Espírito Santo noutra sala. O meu gabinete tinha duas portas e eu servi de pombo-correio. Consegui que a família Espírito Santo reavesse este conjunto valiosíssimo de correspondência inédita do Eça de Queirós.
A troco de?
Seria indelicado ir até esses pormenores. Digo apenas que, como prémio deste esforço negocial (em que eu me senti como ministro dos Negócios Estrangeiros...), obtive uma carta do patriarca da família, o Sr. Ricardo Espírito Santo Silva, dizendo que, se alguma vez pensassem publicar aquele material inédito do Eça, o fariam comigo. Essa promessa ainda hoje subsiste.
Onde estão essas cartas?
Estão em poder da família Espírito Santo. É um espólio volumoso e valioso. O arquitecto Campos Matos explicou que houve uma grande troca de correspondência entre o Eça e o Conde de Arnoso.
Quem era esse fulano do ELP?
Não lhe sei dizer o nome. Sei apenas que me ofereceu uma pequena estatueta, também em retribuição, esculpida em pedra, que eu suponho roubada de uma sepultura - tem todo o ar disso. Ainda hoje a conservo.
Como é que, ao fim de trinta anos, um espólio desses ainda não foi publicado?
Não faço ideia. Não foi por falta de interesse do editor. Mas também foi, no sentido em que eu nunca mais insisti, porque entretanto a Moraes acabou e eu fui fazer outras coisas para a Dom Quixote.
Esse compromisso permanece válido?
Conservo essa carta, assinada pelo Sr. Ricardo Espírito Santo Silva, escrita de Londres. De resto, ele era familiar da actual ministra da Cultura, que conhece esta história, uma vez que chegámos a conviver de perto quando ela era esposa do António Lobo Antunes.
Vai ser um dos seus primeiros projectos na Âmbar?
Certamente que não.
Quando tomou conta da Dom Quixote, levou consigo grande parte do catálogo da Moraes...
Sim. Quando a Moraes acabou, muitos escritores ficaram desprotegidos e vieram comigo para a Dom Quixote.
Li algures que, quando pegou na Dom Quixote, os seus únicos autores portugueses de nomeada eram a Natália e o David Mourão-Ferreira.
É verdade.
Hoje em dia, alguém disse que os únicos grandes autores portugueses que não estão na Dom Quixote são o Saramago e a Agustina. Concorda?
Concordo, mas se calhar estamos a esquecer alguns autores.
Saramago era impossível, depois do que acontecera na Moraes. E Agustina? Tentou alguma vez trazê-la?
Tentei por várias vezes, chegámos a ter conversas a esse respeito. Mas a Agustina tem também uma relação muito próxima com o seu editor e eu não forço essas situações para além de certos limites. Não sou um editor que diga que em concorrência vale tudo.
Que autores foi conquistando para a sua editora?
O João de Melo (da Assírio & Alvim), a Lídia Jorge (Europa-América), o Cardoso Pires (O Jornal), o Lobo Antunes (Vega), o Pepetela (Edições 70)... E depois os novos que foram aparecendo, como a Inês Pedrosa, a Mafalda Ivo Cruz, o Pedro Rosa Mendes, a Ana Zanatti - e esquecerei muitos outros, que se calhar se vão zangar comigo...
Há quem explique grande parte do seu sucesso como editor pela relação de fidelidade que estabelece com os seus autores. Essa fidelidade manifestou-se ao longo deste contencioso?
O apoio dos autores foi praticamente unânime. Todos manifestaram as suas preocupações perante os acontecimentos, a sua amizade, evidenciando devidamente o peso do trabalho realizado ao longo de tantos anos. Não tinham que tomar partido, mas alguns fizeram-no publicamente, outros preferiram não o fazer de um modo muito evidente. Havia que ter algum cuidado, compreende-se perfeitamente. Mas todos quiseram, cada um à sua maneira, directamente, manifestar-me o seu apoio pessoal, a sua simpatia, o seu apreço pelo meu trabalho, agradecendo o que alguns consideravam «que me deviam» e não desejavam nunca esquecer... Mas um escritor nunca «deve» nada a um editor... o editor apenas faz o trabalho que deve fazer. É este que deve ao autor a felicidade de confiar nesse trabalho.
Entre os «seus» autores, a única excepção foi...
... o António Lobo Antunes, que imediatamente apoiou a nova gerência, sem sequer me ouvir, sem sequer falar comigo.
Uma autora que você recusou foi a Margarida Rebelo Pinto.
Isso é conhecido. Ela gaba-se de ter sido recusada tal e qual como o Saramago. Costuma dizer isso por graça (eu também acho graça) e corresponde a uma meia verdade. À Margarida Rebelo Pinto não recusei nos mesmos termos do Saramago - embora, como disse, no caso do Saramago não tenha sido uma recusa, mas um pedido de escusa. Eu li o seu primeiro livro, «Sei Lá», achei que tinha algumas qualidades mas uma escrita descuidada e dei-lhe alguns conselhos sobre correcções a fazer; pedi-lhe que fosse para casa, que trabalhasse e reescrevesse o livro. Ela, com a sua força de juventude, achou que os meus comentários não tinham grande importância e publicou o livro tal e qual estava.
Já a Mafalda Ivo Cruz aceitou as suas sugestões.
Sim, com a Mafalda foi muito interessante. E isso é uma das coisas muito compensadoras da vida de um editor, esse trabalho que se faz com os autores.
Os seus conselhos e sugestões são tidos habitualmente em conta pelos seus autores, mesmo pelos mais consagrados?
Nunca contabilizei muito essa situação. Para mim, é um facto natural atrever-me a discutir com um autor. Desde o José Cardoso Pires, com quem discuti um título ou algo semelhante. Muitas vezes, o autor não aceita - tem todo o direito de não aceitar, a última palavra é dele.
Cardoso Pires aceitava?
Aceitava falar e discutir. Às vezes explicava porque é que insistia em manter aquela solução; outras vezes dizia, com naturalidade, «bom, vou tomar nota e vou ver». O que importa é esse trabalho de repartição, de o escritor sentir-se apoiado no seu editor, enquanto um leitor treinado, experiente e até com certa autoridade.
Lobo Antunes aceitava?
Sim, também. Fiz-lhe alguns comentários relativamente a alguns livros. Aceitava muito pouco esses comentários, mas isso por razões que têm a ver com uma grande precisão que ele põe nas palavras que utiliza e ser-lhe-ia difícil a alteração.
Quase todos os grandes nomes da poesia portuguesa estão também na Dom Quixote.
Nós somos um país de poetas! Eu já tinha convivido de muito perto com os poetas. Fui grande amigo do Ruy Belo, cheguei a conhecer o Jorge de Sena, na Moraes conheci de perto muitos dos poetas portugueses que publiquei. Foi aí que publiquei, pela primeira vez, o Manuel Alegre, depois do 25 de Abril. Sou um leitor regular de poesia e um poeta frustrado, ou seja, gostava muito de saber escrever poesia.
Tem alguma coisa na gaveta?
Não, não. Escrevi poesia nos tempos do «Diário de Lisboa Juvenil», quando era dirigido pelo Mário Castrim.
O prestígio e a qualidade da Dom Quixote avaliam-se também pelos prémios ganhos pelos seus autores.
Sim. Quase todos os grandes prémios literários importantes em Portugal têm sido atribuídos, nos últimos anos, aos autores da Dom Quixote.
O Prémio da APE...
... o da APE, o do Pen Club, o Prémio Vida Literária, o Prémio Camões, o Prémio Máxima de Literatura, o Prémio Fernando Namora, eu sei lá!
Para além dos prémios, há também as traduções no estrangeiro.
Isso é outro trabalho importante que os editores fazem, que é o de promover os seus autores junto de agentes literários, aliciar e seduzir esses agentes e as editoras estrangeiras a pegarem nos nossos autores e a publicá-los.
Tem tido muito sucesso?
Neste momento, pode dizer-se que não há autor da Dom Quixote que não esteja publicado em vários países. Na maior parte dos casos, isso deve-se a um trabalho meu.
O crédito é mais do editor do que do autor?
O crédito é comum, porque, se estivéssemos a falar de maus livros ou de maus escritores, nada disto se conseguiria.
Sim, mas o trabalho de campo...
... é do editor: é apresentar o seu escritor, defendê-lo, explicá-lo nos outros países.
Nos últimos anos, a Dom Quixote passou a publicar também livros da chamada literatura «light». Foi uma opção de carácter empresarial e financeira?
Deveu-se ao que é hoje inevitável no mundo editorial. Surgiram novas faixas de leitores, que também há que abastecer.
Não foi uma cedência da sua parte?
É claro que é uma cedência, não escondo isso. Que, em teoria, eu justifico dizendo que é muito importante que as pessoas leiam seja o que for que leiam. E que, através da leitura, vão conquistando a capacidade de seleccionar. Recordemos o que se passou connosco quando começámos a ler na juventude, que líamos o que nos punham à frente: quer histórias de amor, quer livros policiais. Progressivamente, foram essas leituras que nos foram ensinando a seleccionar as futuras leituras que fomos tendo.
O que é importante é ler?
Exacto, mesmo coisas de menor qualidade.
Mesmo lixo?
Mesmo lixo. Você se calhar também lê lixo, quando pega em tantos livros e depois põe de lado. O que importa é que o convívio com os livros seja cada vez mais livre e mais informado da parte do leitores. Não lhe escondo, evidentemente, que, tendo aparecido novas faixas de leitores nessa área mais ligeira, esses livros também são uma forma que as editoras, que são empresas comerciais, encontram de diversificar a sua actividade e de ir buscar compensações para os livros que se lêem menos.
Publicou alguma coisa verdadeiramente lixo de que se tenha arrependido?
(Silêncio) A minha memória não me acusa de nada de que eu tenha assim uma grande vergonha.
E agora pergunto-lhe o contrário: quais os trabalhos de que mais orgulho tem, como editor?
Se eu lhe disser que foram tantos, estou a ser vaidoso.
Mas diga-me alguns.
A decisão de, no início da Dom Quixote, ter feito uma aposta numa tiragem de 30 mil exemplares num romance de José Cardoso Pires, chamado «Alexandra Alpha», contra a vontade do próprio autor, que me chamou louco por dezenas de vezes, mas que depois se surpreendeu quando, um ou dois meses depois, estávamos a reeditar esse livro.
Era uma altura em que Cardoso Pires atravessava uma crise de autoconfiança.
Exactamente. Ou de ter dito ao Manuel Alegre, quando ele me entregou o original da «Senhora das Tempestades», que ia fazer quinze mil exemplares. Também ele se surpreendeu - e reeditámos a obra. Quinze mil exemplares como tiragem inicial de um livro de poesia era qualquer coisa impensável em Portugal.
Qual foi o livro de poesia que vendeu mais?
Talvez a «Senhora das Tempestades», talvez a obra completa de Manuel Alegre, que já teve várias edições. Ou talvez, lá para trás, o «Poeta Militante», do José Gomes Ferreira, no tempo em que ele estava vivo e os seus livros eram um sucesso. Mas nem são os projectos que vendem muito ou têm grandes tiragens que são importantes na vida de um editor. Fico contente se um livro for discutido pela sociedade, mesmo que essa discussão seja negativa relativamente ao livro.
Qual foi o livro que editou que provocou maior polémica?
(Silêncio)
O do Rui Mateus, «Contos Proibidos»?
Ah, sim, certamente. Foi o mais atrevido. Vendeu trinta mil exemplares no dia do seu lançamento. Teve todas as coberturas - não houve nem jornal, nem rádio, nem canal de televisão que não ocupasse uma grande parte do seu tempo com este livro. Foi um livro que me causou bastantes dificuldades pessoais.
Pressões? Ameaças?
Não digo pressões nem ameaças, mas mal-estares, comentários negativos. Algumas pessoas manifestaram o seu desgosto por eu ter tomado a decisão de o publicar. A todos expliquei que o livro existia, tratava uma questão importante, tinha revelações importantes e procurava ser sério ao ponto de as provar. Desse ponto de vista, achei que o livro merecia ser discutido na sociedade - e a sociedade que o recuse, o queime ou faça o que entender. Ou seja: eu não sou um censor!
Aos 59 anos (acabados de fazer) e depois de ter passado por três editoras, qual é o seu projecto na Âmbar?
É um desafio. Eu tive a felicidade de, no meio destas tristezas e desaires que constituíram o encerramento da minha relação com a Dom Quixote, me ter surgido o desafio que a Âmbar me fez. É um desafio corajoso da parte deles. Trataram-me com uma grande gentileza e simpatia, como que a querer compensar e limpar as minhas feridas. Desse ponto de vista, foram verdadeiramente excepcionais - vieram limpar as minhas chagas e dar-me vida de novo, sem me deixar amachucar. E eu enchi-me de coragem. Talvez eu consiga voltar atrás, talvez eu consiga fazer de novo um projecto editorial similar, visto que não sei fazer outra coisa. Ou seja: reunir autores nacionais e alguns autores estrangeiros de qualidade, tentar pesquisar áreas do conhecimento e do saber, provocar a sociedade com alguns livros mais polémicos. Confesso que não sei se conseguirei, se tenho forças...
Tem condições, do ponto de vista empresarial?
Dão-me condições para isso e dão-me total liberdade e independência. Criaram-me condições para que eu ficasse em Lisboa, onde vou ficar instalado e bem instalado.
Qual é o seu primeiro projecto?
Não tenho nenhuma revelação para fazer neste momento. A única coisa que estou a fazer é definir o projecto editorial, globalmente, com a equipa da Âmbar.
Vai levar muitos autores da Dom Quixote?
Não digo que isso não possa acontecer. Não vou procurá-lo. O que a Âmbar deseja é autores portugueses, apresentados por autores portugueses, livros portugueses nos seus diversos domínios.
O que é, afinal, a sua aposta de sempre!
Vai ser uma aposta forte e muito entusiasmada. Sinto que tenho uma alma nova e tenho todo o gosto em retribuir, com a minha eventual experiência adquirida, aquilo que a Âmbar me tentou dar num momento menos bom do ponto de vista pessoal.
ENTREVISTA DE JOSÉ PEDRO CASTANHEIRA - FOTOGRAFIAS DE JOÃO CARLOS SANTOS

António Lobo Antunes e Nelson de Matos.
O fim de 23 anos de amizade e trabalho em comum

Consta que António Lobo Antunes ainda não teve uma palavra para o seu (ex-) editor.
É verdade. Lobo Antunes apoiou desde o início, sem procurar conhecer qualquer «contraditório» (como agora se diz), a actual gerência da editora. Fez o que achou que devia ter feito. Não lhe sobrou para mim, durante todo este processo, uma única palavra de amizade. Já não falo, evidentemente, de qualquer eventual solidariedade.
Foram amigos durante muitos anos, conhece-o bem. Como explica o seu comportamento?
António Lobo Antunes é um dos nossos grandes escritores, ninguém terá dúvidas a esse respeito - eu não tenho. Mas, como todos os grandes escritores, é uma personalidade complexa. «Um livro escreve-se com a mão, não com a cabeça» - disse ele em entrevistas recentes. O que implica evidentemente um treino apurado para a mão. Distinto do da cabeça - e certamente também do coração... Dos seus 25 anos de escritor, recentemente comemorados, 23 foram passados comigo, lado a lado, estreitamente, cruzando muitos aspectos decisivos das nossas vidas - pessoais e profissionais. Um longo casamento - como ele próprio dizia e escreveu. Recordo todos esses anos com saudade e muita amizade. Foram 23 anos de trabalho duro, para atingir o que hoje se atingiu. Muitas coisas importantes ficaram a ligar-nos. Vinte e três anos são vinte e três anos, não se apagam facilmente. Leia-se o livro de Maria Luísa Blanco, «Conversas com António Lobo Antunes», e o que lá está escrito em muitas das suas páginas. Pelo menos até que, em próximas edições, seja branqueado o que lá está - como acontece na «Fotobiografia» recentemente publicada...
Onde o seu editor é simplesmente ignorado.
Nem o editor, nem o amigo de 23 anos... António nem sequer me enviou este seu novo romance, apesar de eu ainda o ter lido em original e ter acompanhado todo o período do seu trabalho de escrita. E de lhe ter até enviado um breve comentário escrito a meio dessa primeira leitura.
Magoado com Lobo Antunes?
A vida de um editor também é feita destas coisas... Passemos adiante, voltemos a página... fico dispensado de ir a Estocolmo.

O editor que recusou publicar Saramago

Quando estava na editora Moraes, você censurou, entre aspas (no sentido em que não publicou), o terceiro original de José Saramago.
Nós não temos a mesma leitura dos acontecimentos, porque o Saramago conta isso de uma maneira e eu conto de outra. Peço desculpa ao Saramago por considerar que ele conta mal, porque ele acha que existiram influências sinistras por trás da minha decisão. E a verdade é que não existiram influências sinistras nenhumas, foi uma coisa bastante mais prosaica. Ou seja: eu publiquei dois livros do José Saramago...
A saber?
Um livro de contos, que se chamava «Objecto Quase», e um romance, chamado «Manual de Pintura e Caligrafia».
O terceiro é que não. Qual era esse terceiro?
Era o «Levantado do Chão», que o Saramago me apresentou, que eu li, e de que gostei - nada a dizer sobre o livro...
E que eu, pessoalmente, acho que é um dos melhores livros do Saramago...
Exactamente, é verdade, é um excelente romance. Mas nessa altura a Moraes estava no fim.
Falida?
Exactamente. Os livros anteriores do Saramago não tinham vendido. Ele tinha estado no «Diário de Notícias» e estava a atravessar aquele período negativo posterior, muito marcado politicamente. Tive que lhe dizer: «José, fiz duas experiências, não resultaram, lamento não ter condições para poder fazer a terceira.» E não publiquei. Esse livro, por coincidência e por felicidade - e digo-o sem nenhum um rancor...
... foi a explosão...
... foi o início da explosão de Saramago e do seu sucesso futuro. Portanto, passei a ter no meu «curriculum» de editor o ter recusado publicar um futuro Prémio Nobel.
Foi o único editor que se recusou a publicar Saramago em Portugal?
Sim, porque ele mudou-se imediatamente para a Caminho, que tem sido a sua editora. Não sei se teve outras recusas antes de mim, provavelmente teve.
Essa é uma nódoa inapagável!
E não é a única! Na vida dos editores, essas coisas acontecem com relativa frequência: o não se apostar num autor e ter uma grande surpresa.
Ficou surpreendido quando Saramago ganhou o Nobel?
Fiquei surpreendido, claro, porque um Nobel nunca se espera. Quando me disseram, eu estava em Frankfurt, no meio de uma reunião. Claro que fiquei contente. Mas foi mais um contentamento do que uma surpresa.
Voltou a dizer a si próprio «que grande estúpido que eu fui!»?
Sim... Lembro-me que, depois, estive com o Saramago, sentado, no «stand» da Dom Quixote, num momento de descanso, já depois de ser Nobel. Estivemos a falar e divertimo-nos um pouco com essa situação.
Não ficaram sequelas entre os dois?
Da minha parte, nunca. Da parte do José Saramago, creio que ele teve desgosto com essa situação e suponho que nunca me perdoou ou entendeu esse gesto. Sempre relatou isso como se eu tivesse tido pressões para não o editar. E isso não é verdade.
Que tipo de pressões?
Políticas, empresariais, eu sei lá.
Mas vocês pertenceram ao mesmo partido, ainda por cima.
Sim, sim, sim.
Nessa altura, você ainda estava no PCP?
Ainda estava, o que mostra o absurdo da situação.
Mais uma razão para ele ficar magoado!
Exactamente. Saramago vivia um momento muito difícil, em que estava acossado, perseguido. Ele esqueceu-se que eu o apoiei nesses momentos difíceis, até do ponto de vista financeiro, com trabalho de tradução que nunca lhe faltou e que sempre lhe dei através da Moraes, onde há imensos livros traduzidos por Saramago. Ele estava muito magoado e tudo o que lhe acontecia de mau, para ele, vinha de pressões, de ajustes de contas - mas nesse caso nada disso se passou.
Aderiu ao PCP quando?
A seguir ao 25 de Abril. Cheguei a ser responsável por uma coisa chamada «célula dos editores», imagine. Existia uma grande actividade cultural em torno do PCP.
Quem era o seu controleiro?
Não, eu é que era o controleiro da célula; em cima, prestava contas, digamos assim, a um jovem que não era escritor mas que veio a ser, chamado Mário de Carvalho. Nessa altura, o PCP tinha os intelectuais todos do seu lado. Depois, todos nós começámos a confrontar-nos com dificuldades. E cada um, por razões diversas, foi-se afastando.
Quando é que se afastou?
Nem eu lhe sei dizer, mas não muitos anos depois. Não foi um convívio muito largo. Mas é uma parte da minha vida que eu continuo a respeitar.
Não houve, portanto, uma ruptura.
Foi o deixar de ir, o deixar de aparecer, o deixar diluir, sem nenhum conflito, espectáculo ou cena.
Ainda se sente situado na esquerda?
Evidentemente. Continuo a ser um homem de esquerda, mas já numa outra área da esquerda.
Mas o que é que distingue um editor de esquerda de um editor de direita?
Não sei, não sei. Eu procuro dar voz a valores culturais que têm a ver com o pensamento e a reflexão, sem os classificar como de direita ou de esquerda. Não pergunto a ninguém se é de direita ou de esquerda para publicar um livro - publico-lhe o livro se ele tem importância enquanto tal, independentemente de o autor ser de direita ou de esquerda..
Quem o levou para o PCP?
Já não me lembro bem.
Ou não quer dizer?
Foram certamente escritores e gente da área da cultura.